Introdução:
O entendimento exige referências. A formação para ler e abstrair a complexidade das relações de produção nas quais vivemos nos tem sido impiedosamente roubada, mas nunca foi possível apagar, nem mesmo do mais expropriado de escolaridade, a experiência de vida nestas relações de produção. Há, entretanto, imensa distância entre perceber pelos sentidos e apreender as raízes, os fundamentos reais, daquilo que sentimos. A perversidade desta contradição entre a experiência nas relações de produção capitalistas e a negação do acesso às referências teóricas e políticas mais radicais para compreender a sua natureza é inquestionável e dolorosa para quem dela tem consciência e almeja a sua transformação objetiva. A violência desta contradição (profundamente conhecida da experiência e confusamente apreendida pela consciência) operou e opera de forma mais perversa na crítica da ignorância como constitutiva de uma subjetividade vulgar e rebaixada (como se resultasse de escolha medíocre) e, simultaneamente, no elogio da tradição popular em negação à cultura clássica e científica que em última instância, ampara o resultado da contrarrevolução burguesa em todo o mundo. Radicalmente, o negacionismo a que estamos submetidos nestes tempos de pandemia é uma das resultantes de um complexo processo de negação da ciência, da razão, da verdade e de privatização do conhecimento filosófico e científico.
Nos anos 20 do século XXI, organizar e mobilizar a classe que para existir está condicionada à venda continuada da sua força de trabalho, é necessário produzir alternativas de comunicação. O assistir, estudar e analisar filmes é uma interessante ferramenta de aproximação às condições de vida e aos interesses dos trabalhadores, podendo ser ferramenta relevante de mobilização da consciência de classe para si.
A análise do que está em questão em O preço do amanhã (In time, 2011), de Andrew Niccol – no qual, a metáfora que parece explicitar, literalmente, oculta – é exigente e pode ser feita considerando-se diferentes tradições filosóficas e científicas! O que nos permite a abordagem materialista e dialética de um filme de ficção que impacta pela explicitação da profunda contradição no modo de vida de dois grupos muitos distintos: quem possui excedente a ponto de viver eternamente e quem despossuí a ponto de perder de ser desligado da existência?
O enredo em destaque:
Em 2011, a FOX Filmes em associação com a Regency Enterprises lançaram In Time, uma produção cinematográfica que custou 40 milhões de dólares e deu um retorno de cerca de 170 milhões. Escrito e dirigido por Andrew Niccol; produzido por Andrew Niccol, Eric Newman e Marc Abraham; com direção de fotografia de Roger Deakins; produção de designer de Alex Macdowell; edição de Zach Staenberg; Designer de vestuário de Colleen Atwood; Música de Craig Armstrong; direção de elenco por Denise Chamian; e elenco de jovens atores que conta com Amanda Seyfried (Sylvia Weis), Justin Timberlake (Will Salas), Cillian Murphy (Raymond Leon), Vincent Kartheiser (Philippe Weis), Bella Heathcote (Michele Weis), Olivia Wilde (Raquel Salas), Matt Bomer (Henry Hamilton), Johnny Galecki (Borel), Collins Pennie (agente do tempo Jaeger), Toby Hemingway (agente do tempo Kors), Brendam Miller (Kolber), Yaya da Costa (Greta), Alex Pettyfer (Fortis), Lamonde Bird e Paul David Story como (minute man).
O filme de ficção, recordando “A República” de Platão, retrata uma distopia assentada na estratificação absoluta e total controle dos grupos sociais organizados em 12 zonas do tempo delimitadas por fronteiras de concreto e que só podem ser ultrapassadas por agentes de Estado (os Agentes do Tempo com poder de polícia e de justiça). Se a estratificação de Platão remetia aos “talentos”, o talento privilegiado em In Time é a quantidade de tempo excedente adquirido no berço. Nestas 12 zonas os habitantes estão agrupados por quantidades de tempo incorporado em um relógio digital agregado ao organismo, cujo “cronômetro zerado”, determina o brusco fim da existência. Todos os seres humanos nascem com um ano de crédito, que, entretanto, só pode ser usado a partir dos 25 anos, quando cessa o envelhecimento e o ano de crédito em tempo de vida começa a ser gasto. Manter-se vivo até os 25 anos e após chegar a esta idade, depende da contínua conquista de mais tempo. E esta moeda é simultaneamente a que paga os meios de vida e a que contabiliza o tempo de vida. Efetivamente, é a angústia de um tempo em contínuo esgotamento que agita aquela parte mais despossuída da pirâmide! A estratificação social é absoluta porque, justamente, impossibilita a opressores e oprimidos estabelecerem uma relação cotidiana (e, obviamente, de conflito), na medida em que o trânsito entre as zonas resta impedido aos habitantes dos guetos mais pobres pela quantidade de tempo disponível em anos necessários para o pagamento das taxas de pedágio para a travessia das fronteiras.
E aqui começa a distinção entre os dois grupos sociais extremos retratados na película: os habitantes do gueto Dayton (que não possuem mais que o equivalente a um dia de 24h que diariamente gastam e diariamente têm que repor), e os habitante de New Grenwich (que possuem séculos, milênios e milhões de tempo armazenados nos pulsos e nos cofres) são diferentes, seu interesse são divergentes, mas eles não se encontram, seja porque os mais despossuídos não dispõem do montante necessário para transitar as fronteiras, seja por que os que possuem tempo excedente não têm o menor interesse de conhecer o que acontece com quem não tem tempo. As consequências da falta de tempo são, objetiva e subjetivamente, absolutamente desconhecidas dos habitantes de New Greenwich.
O ritmo acelerado da película gira em torno da vida de Will Sallas, um jovem de 28 anos habitante do gueto Dayton que vive com a mãe e dispõe de um perfil solidário e altruísta. A existência desta pequena família gira em torno de calcular o tempo necessário para manter a vida e se ajudar a consegui-lo.
No texto de introdução, Will explica:
Não tenho tempo. Não tenho tempo para me preocupar sobre como aconteceu. É o que é. Somos geneticamente programados para parar de envelhecer aos 25 anos. O problema é que vivemos só mais um ano, a menos que consigamos mais tempo. Tempo agora é a moeda corrente. Nós o ganhamos e o gastamos. Os ricos podem viver para sempre. E o resto de nós? Só quero acordar com mais tempo nas minhas mãos do que as horas do dia. (Will Salas, In Time, FOX/Regency Enterprises, 2011).
Na trama, Will tenta salvar o que parece um rico desavisado que se expõe em Dayton (fora de sua zona de tempo), com um século em seu relógio e gera a cobiça dos minute man. O ricaço Henry Hamilton decidido a encerrar uma existência de 106 anos, conta ao jovem Will como o sistema funciona:
Para que alguns sejam imortais, muitos devem morrer! […] Nem todos podem viver para sempre! Não há lugar. […] Por que os impostos e os preços sobem dia a dia no gueto? O custo de vida sobe para que as pessoas continuem morrendo. Assim, alguns têm milhões de anos e a maioria apenas um dia. Mas a verdade é que há mais que o suficiente. Ninguém tem de morrer antes do tempo. (Henry Hamilton, In Time, FOX/Regency Enterprises, 2011).
Ao revelar o desejo de encerrar sua existência, Hamilton provoca a ira de Will contra a contradição entre ter tempo para existir e desejar o fim da existência. Hamilton olha aquele jovem ingênuo e bem-intencionado e lhe pergunta:
- Se você tivesse tanto tempo quanto eu no seu relógio, o que faria com ele? (Henry Hamilton, In Time, FOX/Regency Enterprises, 2011).
- Eu deixaria de olhar para ele! [...] Se eu tivesse todo esse tempo, com certeza não o desperdiçaria! (Will Salas, In Time, FOX/Regency Enterprises, 2011).
Cansados da fuga para evitar os minute man, Will e Hamilton dormem. Ao amanhecer, sorrateiramente, Hamilton transfere mais de um século para Will, deixando no pulso apenas cinco minutos que usa para caminhar até uma ponte, sentar-se, e esperar o seu relógio desligar-se. Will tenta impedir o suicídio, mas é tarde demais. Nesta tentativa, câmeras registram o indivíduo que esteve por último com Hamilton, e passam a investigar o fluxo deste século que saiu de New Grenwich e caiu indevidamente em uma Zona do Tempo “errada”. Neste meio tempo, Will encontra o amigo Borel, e conta-lhe o que ocorreu, doando ao amigo dez anos. Havia prometido encontrar Raquel Salas no ponto do ônibus de chegada do trabalho. Não sabe que ao quitar o aluguel e as dívidas, o tempo restante no relógio da mãe não seria suficiente para o ônibus de volta. Seus últimos minutos de vida transcorrem numa corrida desenfreada para alcançar Will que vinha a seu encontro. O tempo de Raquel acaba no colo do filho que possui mais de um século no pulso.
Está claro para Will quem são os responsáveis pela morte de Raquel e ele segue para New Grenwich. No trajeto, compreende que seu sonho de ganhar tempo suficiente para levar a mãe àquele lugar era inatingível. Atravessando 12 zonas do tempo, mais de um ano foi gasto pagando taxas de travessia de fronteiras. E Will vivia em um mundo no qual ninguém conseguia muito mais que dois dias de tempo excedente. A chegada de uma habitante de Dayton em New Greenwich evidencia imediatamente a diferença de modos de existência. Will corre, come rápido, olha para as câmeras, analisa tudo ao seu redor, contrastando com habitantes que andam sem pressa, sem olhar para os seus relógios, bem-vestidos e cheios de seguranças e empregados educados e bem-vestidos.
Will está decidido a vingar-se e expropriar os ricos. Descobre um cassino e é orientado pelos empregados sobre como se portar e vestir. Na mesa de pôquer conhece Philippe e Sylvia Weis. O primeiro, ciente do poder do tempo acumulado em seu relógio, desafia Will:
É claro. Alguns acham que o que temos é injusto. A diferença de tempo entre as Zonas. [...] Mas, não é esse o próximo passo lógico na nossa evolução? E a evolução não tem sido sempre injusta? Tem sido sempre a sobrevivência do mais adaptável? [...] É mero capitalismo darwiniano! Seleção natural. (Philippe Weis, In Time, FOX/Regency Enterprises, 2011).
Paga dois séculos para ver a mão de Will, que cobre a aposta, deixando o seu cronômetro com apenas alguns segundos. Ante a surpresa de Philippe e Sylvia pelo risco a que o jovem se expôs, Will vence a cartada e acumula um milênio de tempo. A jovem Sylvia esta curiosa e convida ao jovem a vir à casa de sua família na noite seguinte. Durante a festa, vigiada pela família e por seguranças, interpela Will:
- Você vem mesmo de família com tempo?
- Por que duvidaria disso?
- Eu te vi correndo. Lembrou-me das pessoas do gueto. As vezes tenho inveja delas.
- Você não sabe de nada.
- Ah, não? O relógio não é bom para ninguém. Os pobres morrem e os ricos não vivem. Podemos viver para sempre se não fizermos nada insensato. Isso não te assusta? Que talvez nunca faça nada insensato? Ou corajoso, ou qualquer coisa de valor? (Diálogo entre Sylvia Weis e Wil Salas, In Time, FOX/Regency Enterprises, 2011).
Revela-se a Will o luxo, o cinismo e o tédio das classes abastadas de tempo.
Os agentes do tempo localizam Will na casa dos Weis e o interrogam:
- Sou o Agente do Tempo Raymon Leon.
- Sou Will Salas
- Eu sei. O que está fazendo nesta Zona?
- Não é ilegal é? Mudar de Zona do Tempo?
- Não, não é ilegal. É apenas raro. Onde arranjou isto? (Referindo-se ao tempo de 13 dígitos que Will possui).
- Eu conquistei. Apostando.
- Todo o tempo?
- Não. Um homem chamado Henry Hamilton me deu mais de um século. Ele disse
que não precisava mais. Ele zerou o próprio tempo.
- Henry Hamilton valia milhares de anos. Ele poderia praticamente viver para sempre. Quer que eu acredite que ele era imortal e queria morrer?
-Não quero que acredite em nada. Mas é a verdade. Foi um presente. Não sou ladrão. Mas se vocês estão procurando tempo roubado deveriam prender todos aqui.
- Já entendi. Está falando de justiça. Eu sou um Agente do Tempo. Não me interessa a justiça. Só me interessa o que posso medir. Segundos, minutos, horas. Eu protejo o tempo. E este tempo está nas mãos erradas.
- Esse tempo será detido junto com você. Vamos deixá-lo com duas horas para registro e processamento.
- Por que está investigando um suicídio? Há assassinato em massa no gueto todos os dias!
- É fascinante. Ouvi outro homem falar assim. Foi há mais de 20 anos. Deve ser muito novo para se lembrar do seu pai. Vamos transportá-lo em segurança. Afinal, estamos em New Greenwich. (Diálogo entre Will Salas e o Agente do Tempo Raymon Leon, In Time, FOX/Regency Enterprises, 2011).
Will tem o tempo que ganhou de Hamilton e multiplicou apostando expropriado, e são deixadas apenas duas horas em seu relógio para os tramites do registro de sua prisão. Escapa levando Sylvia como sua refém. No caminho, sofrem acidente de carro e Sylvia tem a década que possuía no pulso roubada pelos minute man. Inicia-se uma corrida para obter mais tempo para existir para ambos, e Will tenta recuperar o tempo que lhe foi expropriado com o pai de Sylvia. Neste meio tempo, Sylvia percebe as intenções de Will que não lhe rouba, e ajuda a outros ao redor, incluindo o próprio agente do tempo que o persegue. Interpela Will:
- Will, se conseguir bastante tempo, vai mesmo doar tudo?
- Nunca tive mais que um dia. De quanto você precisa? Como consegue viver vendo as pessoas morrerem ao seu lado?
- Não vemos. Fechamos os olho. Posso te ajudar a conseguir todo o tempo que quiser. (Diálogo entre Sylvia Weis e Wil Salas, In Time, FOX/Regency Enterprises, 2011).
Revela-se a luta dos agentes do Estado (reivindicando a independência, mas claramente a serviço da acumulação privada) para manterem as classes nas suas zonas do tempo. Will é uma ameaça porque planta a esperança e Sylvia usa do poder hereditário para quebrar a ordem do sistema, ajudando a Will distribuir tempo em Dayton.
Revela-se o papel dos minute man que perseguem Will:
- Esta dando trabalho, o que normalmente é a minha função. Entendeu? Os agentes do tempo me deixam em paz porque tenho limites. Roubo da minha própria gente. Sabe que a coisa vai mal quando eu tenho que restaurar a ordem (Fortis – chefe da gangue dos minute man, In Time, FOX/Regency Enterprises, 2011).
Will mais uma vez se arrisca e vence os minute man. Resta o Agente do Tempo que não desiste de capturar Will e Sylvia. Durante a perseguição obsessiva, Raymond Leon esquece de solicitar a sua reposição diária de tempo. Em sua fala final, ao revelar que é de Dayton, mas conseguiu escapar, diz: “É assim que deve ser. Eu não inventei o relógio. Não posso voltar o tempo. Eu o mantenho funcionando. Eu protejo o tempo” (Raymond Leon, In Time, FOX/Regency Enterprises, 2011). O homem que protege o tempo, constata desolado os segundos que lhe restam. Seu tempo se esgotou e o cronômetro zerado sinaliza o término da sua existência. Will e Sylvia podem prosseguir desafiando um sistema que desorganiza-se à medida em que o tempo roubado por ambos circula entre as zonas.
Notas críticas:
Não por acaso o que excede e o que falta é o tempo. Aqui, a literalidade do título em português brasileiro (não tão interessante na tradução portuguesa de Portugal “Sem tempo”), revela a metáfora: “O preço do amanhã”, contado em segundos para uns e em séculos e milênios para outros. A metáfora que retoma à máxima “tempo é dinheiro”, aborda a redução da existência humana à contínua procura pelo equivalente geral que a possibilita. No caso da película de Niccol, o tempo é o equivalente geral, a moeda corrente a que todas as existências estão radical e organicamente vinculadas, curvadas, subordinadas, determinadas.
A certa altura, Will Salas assalta um transeunte a procura de tempo. Sua fala é emblemática: “Diria, “seu dinheiro ou sua vida”, mas já que seu dinheiro é sua vida...” A genialidade do filme está nesta transposição profunda do equivalente geral para a própria contagem da existência humana em tempo. É a diferença entre dedicar toda a existência a lutar para existir e ter tempo excedente para existir plenamente podendo pagar pelo que há de melhor e expor esta conquista conspicuamente. Este é o eixo axiológico do filme, no qual move-se a contradição entre a concentração privada, o egoísmo, o narcisismo e a expropriação do tempo de vida, o altruísmo como valores condenados e elogiados. A questão de fundo é a luta contínua pela existência que exige a posse do equivalente geral “tempo”. O drama central é a contínua e injusta exploração dos nascidos condenados a lutar por mais tempo para existir. Uma análise mais cuidadosa, entretanto, pode revelar que a profunda transposição da necessidade do equivalente geral “dinheiro”, para o “tempo de existência”, permanece ocultando e mascarando aquilo que é o “equivalente geral” em termos de como chega a ser equivalente geral e em termos de como se processa a concentração deste equivalente geral em umas mãos em detrimento de outras. E este é o principal limite do filme.
O esforço de apagar a contradição é geográfico! Camadas de fronteiras de concreto delimitam as Zonas do Tempoultrapassáveis apenas por aqueles que dispõem de muito tempo excedente para pagar as taxas de pedágio. Obviamente, os ricos não carecem transitar para as zonas pobres. Esta tarefa fica a cargo dos agentes de estado, os agentes do tempo. De um lado a luta diária por mais 24 horas para viver e do outro a luta para evitar ter o tempo acumulado privadamente roubado, tornam impossível conhecer o que é viver com sobra de tempo e o seu contrário.
A distinção entre as classes é levada aos extremos e a contradição é ocultada de possuidores de excedente e despossuídos, de forma a que a existência do outro espaço é, simultaneamente, para os que vivem no gueto, a expectativa de conquista do luxo do tempo para gastar; para os que vivem em New Greenwich, o pânico (nem em imaginação experimentado pelos possuidores de tempo excedente) de estar condicionado a lutar continuamente para conquistar tempo para existir (como vivem os habitantes do gueto – “Dayton”)! A dramaticidade da questão é explorada às últimas consequências, no evidenciar do luxo que tempo excedente possibilita e, particularmente, no evidenciar do significado de um cronômetro (carteira de tempo) zerada: o stop brusco, bruto, romantizado pelo espasmo e queda que sinaliza que o deixar de existir. A dramatização desta tragédia é particularmente bela nas cenas do término do tempo de Raquel Salas (Olivia Wilde), Henry Hamilton (Matt Bomer) e Raymond Leon Cillian Murphy, ou na cena em que Sylvia Weis (Amanda Seyfried), Will Salas (Justin Timberlake), lutam para conseguir mais tempo para continuar a existir.
Mas não há relação entre as zonas e seus habitantes. A luta de classes resta impossibilitada pelo próprio impedimento de uma relação contraditória e dialética entre estas. A metáfora de Niccol acerca de uma existência que se vai no tempo, trabalha para ocultar a contradição estarrecedora. A posse do tempo excedente aparece naturalizado e a produção da existência fica reduzida à procura por mais tempo, sem que compreendamos até as últimas consequências, por exemplo, aquilo que nos mantém vivos enquanto o cronômetro corre. O consumo do tempo surge, para os habitantes de Dayton, reduzido às esferas da alimentação, da habitação, do transporte e do endividamento. A carestia é evidente, mas não impede de alimentar-se e habitar, que, aliás, não aparecem como um problema objetivo. O problema é abastecer-se de tempo para existir. Por suposto, viver com 24 horas diárias a serem continuamente recuperadas parece suficiente. O que mata não é a fome, mas a falta do tempo, o equivalente geral.
Isto porque nesta distopia, nascemos com uma quantidade x de tempo e é um mistério o processo de sua reposição para os que possuem tempo excedente, tornando-se explícita a forma como os despossuídos o conquistam pelo trabalho, pelo endividamento, pelo crime, pelo jogo de risco e pela solidariedade dos pares despossuídos. A ligação contraditória entre o gasto do tempo (o esgotar da existência) e a acumulação do excedente (a existência sem fim) é ocultada por malabarismos diversos, que vão da existência de um controle geográfico automatizado, informatizado, policialesco e de inteligência das fronteiras e da concentração do tempo excedente nas fronteiras mais abastadas, à vaga referência à acumulação pela jogatina ou pela expropriação de juros. Há referência ao “tempo roubado”, mas ela é simultaneamente utilizada pelos habitantes de New Greenwich e de Dayton. A questão fundamental que se refere a onde e como é produzido o tempo excedente é reduzida ao berço! E “Ninguém tem culpa do berço que tem” (Will Salas, In Time, FOX/Regency Enterprises, 2011). É a zona do nascimento que aparece determinando o acesso ao tempo excedente ou a vida dedicada à luta por mais tempo.
Há circulação mundial do tempo, mas a direção contínua da extração do tempo de existência dos despossuídos para os possuidores de tempo excedente é trabalhada para ser apenas deduzida: a carestia, os juros do endividamento, o roubo contínuo pelos mais variados agentes privados e estatais, a referência aos Waiss na casa de empréstimos e no banco. Pela naturalização da riqueza (“tempo de existência”), oculta-se a natureza das relações de produção em que produzimos a nossa existência. O expectador é levado a identificar-se com a sua experiência, mas ela nunca lhe é dada à consciência com toda a sua radicalidade! A metáfora, porta a identidade, mas longe de facilitar o entendimento, o impede.
Há efetiva experiência incômoda provocada pela película. O absurdo de um tempo que, entre os despossuídos, se esgota de forma acelerada e sequer possibilita sua recuperação proporcional diária, é estarrecedor e revoltante. A existência de um agente de Estado, o Agente do Tempo (Raymon Leon), que tem a tarefa de “proteger o tempo”, ou seja, a apropriação privada do tempo por aqueles destinados pelo nascimento a possuí-lo, alude à injustiça da lógica da exploração e agrava a revolta. O cinismo com que Philippe Weis reivindica o darwinismo social como lei determinante do modo de vida In Time são estarrecedores!
Mas também a revolta é apassivada. A saída heroica é antirrevolucionária e messiânica! Robin Hood é retomado para uma ênfase a um altruísmo hereditário inato, próprio de um herói/eleito/destinado (aparecido entre os despossuídos, Will Salas, obediente e bom filho, bom amigo, justo, honesto, solidário até mesmo com os inimigos), capaz (por sua natureza altruísta) de converter a uma portadora de existência abastada, sem sentido e entediante (Sylvia Weis), convencida da justeza da causa, em aliada da luta pela distribuição igualitária do tempo para todos os despossuídos. O texto de síntese da ação do herói é interessante: “Não pense que é um roubo. Reintegração de posse. Vou deixar o que tive na maioria dos dias da minha vida: um dia” (Will Salas, In Time, FOX/Regency Enterprises, 2011) ou ainda “É roubo quando já foi roubado?” (Diálogo entre Sylvia Weis e o pai Phillip Weis, In Time, FOX/Regency Enterprises, 2011).
A luta de classes com interesses contrários resta trabalhada para ser evitada a todo o custo. As zonas garantem o impedimento da relação. O papel de ricos e despossuídos é pacífico. Os primeiros, estão desocupados da tarefa de controle que cabe ao Estado. Os segundos são reivindicados pelo herói que enfrenta o sistema. Despossuídos, frente à injustiça, se conformam. Sua luta é exclusivamente para manter o tempo para existir. Diante da necessidade e da angústia do outro, reivindicam o individualismo egoísta de autopreservação. Ao receberem passivamente mais tempo para existir, contraditoriamente, a justeza desta devoluta é imediatamente reconhecida e acatada. Finalmente, os despossuídos podem entregar-se ao luxo de deixar de correr e relacionar-se (sem deixar, é claro, de cumprir a “tarefa revolucionária” de ocultar o herói). Mesmo o saque está autorizado pela mocinha, herdeira, proprietária hereditária do direito de dispor da fortuna e descentralizar, em rebeldia, a riqueza que a família concentra. O passo “revolucionário” resta circular na saída messiânica que apresenta e na ameaça final de retorno da necessidade ineliminável (e naturalizada) da distinção: não é possível que todos tenham acesso a tempo de existência excedente, é necessário conter a população que cresce, criando mecanismos para impedir o crescimento desta população.
Will: Tempo de qualidade. Existe mesmo um homem com um milhão de anos.
Phillip: É o meu primeiro milhão, não será o último.
Will: Sabe o bem que poderia fazer?
Phillip: Sei o mal que poderia fazer. Se desse um ano para um milhão de pessoas, só prolongaria a agonia.
Sylvia: Prolongaria as suas vidas.
Phillip: Inundar a zona errada com um milhão acabaria com o sistema.
Will: Vamos esperar que sim.
Sylvia: Não fomos feitos para viver assim. Não devemos viver para sempre. Embora eu me pergunte, pai, se já viveu um dia de sua vida.
Phillip: Ah é? Pode perturbar o equilíbrio por uma geração. Duas. Mas não se enganem. No final, nada vai mudar. Porque todos querem viver para sempre. Todos acham que têm uma chance de ser imortais, mesmo que tudo evidencie que não. Todos pensam que serão a exceção. Mas a verdade é que para que alguns sejam imortais, muitos devem morrer.
Will: Ninguém deveria ser imortal se uma pessoa sequer tiver de morrer (Diálogo entre Sylvia Weis, Phillip Weis, e Wil Salas. In Time, FOX/Regency Enterprises, 2011).
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