CRITICA E SUPERAÇÃO DAS CONDIÇOES TERRENAS QUE PRODUZEM A RELIGIÃO COMO REFLEXO ALIENADO
- Elza Peixoto
- 10 de jul.
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No Brasil, o próprio processo de produção da formação social brasileira (assentado na monocultura, no latifúndio e no trabalho escravo, e, por que não dizer, nas correntes religiosas desde os jesuítas aqui embarcadas, nas suas mais variadas versões), assim como os processo históricos de constituição da resistência à Ditadura (em que a Igreja dividida entre as necessidades do povo e as demandas dos oligarcas, fez-se teologia da libertação), tornaram intocáveis o problema da religião, de forma que podemos encontrar pessoas que reivindicam simultaneamente o marxismo e o mundo sobrenatural e as entidades sobre-humanas a quem atribui-se a função de proteção contra os problemas terrenos. Restam não resolvidos, os problemas postos pela crítica materialista e dialética ao idealismo (entre os quais encontra-se a religião).
TESE 4ª | NOTAS PESSOAIS |
4 Feuerbach parte do facto [Faktum] da auto-alienação religiosa [religiöse Selbstentfrendung]: da duplicação [Verdopplung] do mundo num [mundo] religioso e num [mundo] profano [mundano, weltlich]. O trabalho dele consiste em resolver [auflösen] o mundo religioso na sua base profana [weltliche Grunlage]. Mas que a base profana se destaque de si própria, e se fixe um reino autónomo nas nuvens, é de explicar apenas a partir do autodilaceramento [Selbstzerrissenheit] e [do] autocontradizer-se [Sichselbstwidersprechen] desta base profana. Esta própria [base] tem, portanto, em si própria, tanto que ser entendida na sua contradição, como praticamente revolucionada. Portanto, depois de, por exemplo, a família terrena estar descoberta como o segredo da família sagrada, a primeira tem, então, que ser ela própria teórica e praticamente aniquilada [vernichtet]. | - A tese expressa o cerne do materialismo dialético, que, pelo processo de análise crítica ontognosiológica, procura pelos fundamentos objetivos que produzem aquilo que é o objeto que se está a criticar; - Aqui, o problema da religião (corrente entre os jovens hegelianos) enquanto camada ideológica da sustentação do poder monárquico e simultaneamente, o ópio que obscurece as condições reais efetivamente vividas, território de corrupção que se reivindica a chave do céu, é reconhecida (na agonia dos seres humanos na terra) como um reflexo pela ânsia de solução dos problemas terrenos ainda não desvelados e revolucionados. - Nos anos 40, a religião aparece como objeto nos textos de j Engels nos anos 40 e 80 (Cartas de Wuppertal, a situação da classe trabalhadora na Inglaterra, A origem da família, da propriedade privada e do Estado), e nos textos de Marx (Manuscritos de 1844, A questão Judaica, Introdução à Crítica da filosofia do direito de Hegel). |
Barata-Moura tece 7 comentários organizados em 7 parágrafos entre as páginas 335 e 374.
No Parágrafo 1, Barata-Moura anota que o problema de reconhecer o fato (Feuerbach reconhece a autoalienação religiosa) “e dele “partir” em subsequentes digressões, não é propriamente o mesmo que “explicar” a “factualidade” (BARATA-MOURA, 2018, p. 336). Destaca que “em sede de religião, [Feuerbach] carreou, por certo, perspectivas e materiais relevantes para as desmontagens da “fazedura””, entretanto, há necessidade de “transgredir o plano da mera “facticidade””, para “compreender o concreto assentamento das “feituras”” (BARATA-MOURA, 2018, p. 335-337). No encaminhamento da partida desta análise, Barata-Moura retoma em Heródoto, no processo de definição do objeto da história, o nexo entre fato e feito (ou seja, “as obras ou as coisas engendradas pelos homens”. Na Crítica de Feuerbach, a religião ressurge como engenho humano, ao qual a humanidade se subordina como criatura, esquecida de ser de fato, criadora. Para Barata-Moura, o “ponto de partida seminal em que Feuerbach se firma” resume-se da seguinte forma:
Em termos sintéticos, mas, do mesmo passo nucleares, para Feuerbach, a religião configura uma auto-alienação do ser humano, na precisa medida em que ela corresponde tão-só à transferência sub-reptícia, por ele efectada, dos seus predicados essenciais (pensados) para um “outro” ente, imaginariamente “hipostasiado” como uma instância que lhe é estranha. (BARATA-MOURA, 2018, p. 337).
Barata-Moura retoma a trajetória da abordagem destes problemas no idealismo alemão, nas obras de Kant e Fichte, afirmando que Feuerbach certamente recorda estas referências, aprofundando-as, concentrando-se “[...] nuclearmente na inconsciência deste trans-porte de um património que é próprio para uma entidade superior fantástica, o qual determina, e se consuma em um correlativo rasgamento da unidade intrínseca do sujeito humano:” (BARATA-MOURA, 2018, p. 338-339). Transcrevendo trechos de “A essência do cristianismo”, Barata-Moura evidencia como na análise de Feuerbach “a figura de “deus” corresponde [...] a uma hipostasiação – depurada de imperfeições, e solta dos constrangimentos da finitude – daqueles predicados que à condição humana pertencem” (BARATA-MOURA, 2018, p. 340). No processo de alienação dos seres humanos de sua essência “este investimento de ignorados pecúlios próprios na “entificação” imaginária de um alheio interventor revela igualmente o mistério de uma “patologia” sentida que, afinal, descobre na origem um acto instituinte, que se apagou da memória, mas reclama ser re-apropriado” (BARATA-MOURA, 2018, p. 340). Desta forma, na análise de Feuerbcah ““Deus” [...] não passa de uma imagem especular -artificiada em entidade agente – de tudo aquilo que aos humanos é querido, e no modo de uma anunciação nostalgicamente experimentado” (BARATA-MOURA, 2018, p. 341).
No Parágrafo 2, desenvolve afirmando que nesta Tese 4, “Marx explicita que o constatado facto da “auto-alienação”, sobre a qual o fenómeno religioso repousa” encontra-se amparado na duplicação num mundo religioso, de um mundo profano (BARATA-MOURA, 2018, p. 342), em um “dualismo incomunicante” que acompanha os “enlevos proclamados pela transcendência” facilitando “a manutenção dos planos, sem complicadas entradas pelo encavalitado das relações” (BARATA-MOURA, 2018, p. 342-343). Em Feuerbach, “o desfecho limita-se a constatar o processo incorrido” (BARATA-MOURA, 2018, p. 344), nas palavras de Feuerbach: “A religião sacrifica a coisa à imagem”. Na síntese de Barata-Moura o problema assoma:
E como não raro, nos aprendizados da feitiçaria, aos noviços costuma ocorrer, quando a palavra que opera e desfaz o feitiço é esquecida: a “criatura” ocupa mesmo o posto em que foi arvorada, e passa a dominar o “criador”, apeado entretanto das suas funções genésicas (BARATA-MOURA, 2018, p. 344).
No contexto sobre o qual presentemente nos estamos a debruçar, esta dualização empreende um volteio alucinante: inverte com rapidez o sentido da determinancia, para logo vir a desembocar num depreciamento axiológico da matriz originária, subindo, deste modo, a “paradigma”, o “duplicado”.
Em acelerada usurpação, o “éctipo” [a cópia] devem “arquétipo” [modelo].
E a crença no imaginário estereotipado – riscando do mapa a estrada de humanas elaborações que lhe franqueou o acesso – converte-se em confrangedora desestima pelo “tipo”, a partir do qual a “idealização” foi cunhada” (BARATA-MOURA, 2018, p. 344-345).
No Parágrafo 3, Barata-Moura analisa a forma como Feuerbach resolve a questão! Na desmontagem do processo no qual “a “réplica”” toma a forma e assume “as funções do “original””, explicita-se a tarefa que Feuerbach dispõe-se a desempenhar, reconhecida também por Marx (BARATA-MOURA, 2018, p. 347). O esforço de Feuerbach é “descer à fundamentação”, pois para este, “Explicar significa fundamentar”, e para quem o fundamento, “o segredo da teologia e a antropologia”. E a solução que encaminha é “uma re-condução do mundo que é (religiosamente) trans-posto “para cima” ao mundo que fica “em baixo” (BARATA-MOURA, 2018, p. 351-352). Barata-Moura recupera já nos humanistas do Renascimento a origem desta agenda que Feuerbach assume, na qual o ser humano é o começo, é o centro e o fim da religião (BARATA-MOURA, 2018, p. 348-352).
No Parágrafo 4, Barata-Moura reconhece que Feuerbach avança “[...] na colocação acertada do problema” e na sedimentação de “[...] inegáveis avanços, que não podem de todo ser subestimados” (BARATA-MOURA, 2018, p. 348-352). Anota, entretanto, que “Não obstante, de alguma maneira, [Feuerbach] fica à porta no questionamento, sem, nos envencilhos da realidade, verdadeiramente lhe transpor o limiar” (BARATA-MOURA, 2018, p. 353). Não ultrapassa “uma chamada de atenção para o embasamento terrestre onde esta celestialidade onírica acaba por se inscrever” (BARATA-MOURA, 2018, p. 353). Este limite resta em face de Feuerbach confiar “em que este abrir dos olhos que conduz a um estado de vigília se tornará bastante, no que toca ao entender das ilusões grassantes, e à pretendida emenda dos comportamentos nele subjugados” (BARATA-MOURA, 2018, p. 353).
No Parágrafo 5, Barata-Moura analisa no ponto de chegada de suas reflexões, os limites da solução dada por Feuerbach, e anota ser necessário “surpreender – num movimento de transformações realmente apontado – as condições histórico-materiais que se encontram na génese dos surtos religionários” (BARATA-MOURA, 2018, p. 357-360). Marx localiza a profundidade do problema e o desenvolve desde A questão Judaica (BARATA-MOURA, 2018, p. 360), em crítica às posições de Bruno Bauer. Diz Marx:
Não é “a existência da religião” que contradiz “o completamento do Estado” [...], são as contradições inscritas no viver determinado de uma colectividade – que um “democratismo” burguês organiza – que servem de pasto à erupção de credos religionários. (BARATA-MOURA, 2018, p. 361).
No Parágrafo 6, Barata-Moura reforça o contraste entre o passo a mais que passa a ser dado por Marx: “Não basta despertar as almas do devaneio onírico [lugar no qual Feuerbach conforma-se em deixar a questão)”, trata-se de “voltar ao chão pelas vigílias calcado, para lhe por a trama a nu, e revolver a entranha transformanda” (BARATA-MOURA, 2018, p. 363). É a própria base que precisa ser “entendida na sua contradição” e “praticamente revolucionada”, em um processo no qual o revolucionamento prático se opera pela “remoção da contradição” (BARATA-MOURA, 2018, p. 363-364). Onde vemos o problema da produção religiosa de fantasias, urge avançar para a análise “[...] da produção real dos meios de vida e do próprio viver” (BARATA-MOURA, 2018, p. 364).
No Parágrafo 7, em análise, a última frase desta tese 4: “Portanto, depois de, por exemplo, a família terrena estar descoberta como o segredo da família sagrada, a primeira tem, então, que ser ela própria teórica e praticamente aniquilada”. Barata-Moura destaca que para Marx está em questão “Identificar, compreender e pôr termo às condições reais que servem de alimento a um conjunto de ditirambos em torno da sacrossanta família” (BARATA-MOURA, 2018, p. 369). A chamada de atenção é para a “[...] necessidade, anteriormente enunciada, já, de procurar compreender, a partir da produção material histórica do viver das coletividades humanas, as diversas formas de socialidade de funcionamento familiar” (BARATA-MOURA, 2018, p. 373).
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