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Blog Crítica Prática

Foto do escritorElza Peixoto

TEORIAS E CATEGORIAS PARA A ABORDAGEM DOS PROBLEMAS DO TRABALHO, DO TEMPO LIVRE E DA EDUCAÇÃO

Demarcações

Em tempos tão duros, começo por dizer: boa tarde, é um prazer estar conversando com vocês! É bom dialogar com outro grupo que luta para manter-se vivo (1) quando não há recursos, (2) quando a vida se encontra ameaçada e temos que cuidar dos nossos, (3) quando participar dos debates exige muito investimento financeiro e muita burocracia! (4) Quando publicar passa pelo crivo de gente que (5) não acompanha nem entende o que estamos discutindo. Em tempos de tantos enfrentamentos, ando na cabeça com um verso do poema do Drumond de Andrade, “A Luís Maurício, Infante”: “Admito que amo nos vegetais a carga de silêncio [...] Mas há que tentar o diálogo quando a solidão é vício”. É um prazer conhecer e reencontrar os já conhecidos membros do Grupo CAE – Centro Avançado de Estudos em Educação e Educação Física, a quem saúdo de conjunto nas pessoas do Prof Nazareno e do Prof. Galdino. Um grupo que se dedica aos estudos das práticas, das políticas (que inclui a formação de professores) e da produção do conhecimento em Educação e Educação Física, e que também vem estudando o marxismo – dois aspectos comuns ao M.T.E.

Recebi o convite do Prof. Carlos Nazareno para dialogar com vocês sobre os estudos que venho desenvolvendo no âmbito do marxismo. Começo justamente por delimitar esta vastidão, retomando uma conferência proferida por José Paulo Netto durante o IV Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” em dezembro de 1997, em mesa redonda que teve por tema as “Questões teórico-metodológicas da história”, na qual José Paulo proferiu a conferência “Relendo a teoria marxista da história”. Ali, o pesquisador afirma estar “[...] convencido de que nunca existiu essa tiragem quimicamente pura, ideologicamente pura, teoricamente pura, - o marxismo”. Explica que “[...] o que se convencionou designar como marxismo”, é um compósito campo teórico-cultural, teórico-político, onde convivem e se entrecruzam e frequentemente colidem e se chocam, variadas correntes intelectuais e práticas interventivas”. Por esta razão, não há uma, mas variadas “teorias marxistas da história, em maior ou menor escala, vinculadas às distintas correntes do pensamento marxista”. Paulo Netto defende que “o reconhecimento dessa pluralidade de concepções teóricas é um imperativo posto pela análise da realidade do desenvolvimento da tradição teórica fundada por Marx” (PAULO NETTO, 2000, p. 51-53).

A consciência desta diversidade e vastidão me fez ser muito prudente na aproximação com o marxismo. No processo de reivindicá-la como referência, venho escolhendo cuidadosamente o que ler, delimitando: (1) a obra de Marx e Engels, (2) de Lenin e, mais recentemente, (3) de José Barata-Moura. Os primeiros, fundam a tradição que abraçamos e são leitura obrigatória de quem reivindica esta tradição. O segundo, é referência porque, na tradição comunista, é aquele que põe o materialismo dialético na direção de um movimento revolucionário e uma nação revolucionária – o temos estudado perifericamente. O terceiro é (i) um rigoroso estudioso da filosofia em geral, e em particular do idealismo alemão, uma das três fontes do marxismo; (ii) um poliglota e um rigoroso estudioso das obras de Marx e Engels no original alemão que ele conheceu a partir da MEGA, e tradutor desta obra para a língua portuguesa; e por esta razão, (iii) um profundo conhecedor das obras que Marx e Engels leram e da correspondência que estabeleceram com os homens do seu tempo, ou seja, é um profundo conhecedor dos debates em que estavam envolvidos e da conjuntura em que estes debates ocorreram, sendo fundamental para o projeto de estudar Marx em perspectiva Materialista e Dialética. Os primeiros temos tentado ler sem a ajuda de intérpretes, nas fontes disponíveis em língua portuguesa e espanhola. Ao terceiro, temos recorrido para fundamentar nossa formação a respeito de uma obra que estamos lendo na fonte possível em língua portuguesa desde 1991.

O limite objetivo de aproximação pelas traduções

Para estudar a obra de Marx e Engels, deparamo-nos com muitas barreiras:

(i) a barreira da língua aparece como a principal (quem, na pretensão de estudar um autor, não sofreu ao ler o alerta de Humberto Eco de que devemos escolher objetos que sejam do tamanho das nossas competências para apreendê-lo e que uma tradução não é uma fonte de primeira mão – ler Marx, só em alemão é rigorosamente o que Eco considera científico e foi a primeira pergunta que Barata-Moura me fez quando nos reunimos em Lisboa para a primeira orientação do pós-doc);

(ii) mas mesmo dominando o alemão, a segunda barreira relevante para o rigoroso estudo de Marx e Engels é apropriar o debate do tempo em que viveram cujas pistas vão deixando em cartas e notas registradas nas obras. Noutras palavras, o domínio da língua resolvido, temos que compreender como as questões que pensaram lhes foram suscitadas em uma conjuntura muito determinada;

(iii) no limite de podermos ler apenas em uma segunda língua (espanhol ou inglês ou mesmo em português), esbarramos nos deslocamentos de sentidos e na bagagem dos tradutores que vão sempre traduzir interpretando, o que deve nos deixar desconfiados acerca das traduções e intérpretes com os quais trabalhamos;

(iv) Por fim, considero uma quarta barreira, a ida para a obra de Marx e Engels com preconcepções advindas das “introduções ao pensamento de...” nas quais são as notas deixadas por Lukács, Meszáros, Trotsky, Lenin, Cheptulin, Kosik, Kopnin ou outros intérpretes brasileiros que dão o tom do que Marx e Engels pensam...

Não deve ser desconhecido de quem estuda estes autores a polêmica sobre a tradução mais fidedigna, em geral, com posições marcadas por uma certa propaganda genérica de problemas e não em uma rigorosa checagem dos debates acerca das melhores formas para traduzir ou interpretar este ou aquele aspecto. Trata-se de uma questão relevante que (i) nem se resolve com o descartar/assumir esta ou aquela tradução; (ii) nem favorece a nenhuma tradução que circule no Brasil. Talvez as duras palavras de Humberto Eco acomodem este debate:

Tradução não é fonte: é uma prótese, como a dentadura ou os óculos, um meio de atingir de forma limitada algo que se acha fora do alcance (ECO, 2000, p. 39).

A maior parte de nós estuda as obras de Marx e Engels por traduções para a língua portuguesa que não foram adequadamente investigadas do ponto de vista da formação de quem traduz (não é suficiente conhecer profundamente a língua alemã) nem do ponto de vista do debate mundial sobre a melhor forma de traduzir determinadas expressões muito particulares. Não podemos embarcar em posições e expressões pretenciosas que aparentam conhecer com radicalidade aquilo que difamam. Estamos diante de um grande desafio que temos que reconhecer e cuja superação demanda recursos financeiros e bibliográficos de que não dispomos.

Ler na fonte em alemão não é tão simples! Mesmo que dominemos o alemão, há o desafio de (i) dominar como opera o alemão de época, (ii) conhecer as obras que Marx e Engels leram e nas quais se aprofundaram, e (iii) acompanhar os debates com os quais Marx e Engels se defrontaram e nos quais se posicionaram, o que demanda conhecer bem a correspondência dos autores e a publicística da época. Há aqui não só a necessidade de possuir acesso fácil a todos os volumes da MEGA, como poder ir consultar os periódicos que circulavam na época em que Marx e Engels desenvolveram a concepção materialista e dialética da história.

Com muita tristeza, é preciso que admitamos que sequer possuímos em língua portuguesa uma edição completa das obras de Marx e Engels que inclua a correspondência que estabeleceram entre si e com os demais militantes e intelectuais de seu tempo, que muito contribuiria para compreendermos finalidades e posicionamentos que restam impedidos em obras publicadas de forma avulsa, isoladas do contexto em que foram tornadas públicas, que, para um investigador, deve ser sempre apanhada na correspondência e nos debates do tempo. Até este momento não está garantido aos brasileiros o acesso ao conjunto da obra dos fundadores do marxismo – a volumosa MEGA. A única coleção a que tive acesso (não sem alguma procura) que contém as obras de juventude de Marx e Engels (em língua espanhola) é da Fondo de Cultura Econômica publicada no México. A coleção de obras escolhidas publicadas pela Editorial Avante/Progresso (1982), começa com as Teses sobre Feuerbach e A ideologia alemã (1986). As obras escolhidas publicadas no Brasil pela AlfaOmega divulgadas no Rio pela Editora Vitória (v. 1 em 1956; o v. 2 em 1963 e o v. 3 em 1963) e em São Paulo pela Alfa-Omega (1980 os três volumes) começam com o Manifesto do Partido Comunista. As notas sintéticas de Tom Bottomore sobre a circulação dos textos de juventude de Engels em língua portuguesa no Brasil, dão notícia da publicação do Esboço de uma crítica da economia política no número 05 da revista Temas de Ciência Humanas em 1979 e princípios do comunismo (1847) publicado pela Global em 1980 e A condição da classe trabalhadora na Inglaterra obra de 1845 que “circula” no Brasil a partir de 1975. As demais obras de Engels que passam a circular em língua portuguesa a partir dos anos 1956-63, são as obras da maturidade, tais como “Sobre o princípio da autoridade” (de 1873), O papel do trabalho na transformação do macaco em homem (de 1876); Anti-Duhring (escrita em 1877-1878); O desenvolvimento do socialismo da utopia à ciência (obra de 1880 - que circula com outro título no Brasil); Dialética da natureza (obra de 1878-1882); Origem da família, da propriedade privada e do Estado (1844); Contribuição à história da Liga dos Comunistas (1885); Ludwig Feuerbach e a saída da filosofia clássica alemã (obra de 1886 que também circula no Brasil com outro título) e O papel da violência na história (escrito entre 1887-1888). A grande Editora Boitempo, a partir dos anos 2008, começa a circular os textos de Engels acima referidos, a maior parte daqueles escritos individualmente, publicados a partir de 2015. Em 2020, um consórcio de entidades publica pela Expressão Popular em um fascículo próprio e exclusivo (em edição organizada por Lívia Cotrim)[1], os artigos de Engels escritos no ciclo revolucionário do final dos anos 40 (1848 – 1849) na Nova Gazeta Renana (em que Marx e ele foram Editores e a partir da qual mantiveram intenso diálogo com o proletariado que desde 1846 trabalhavam para organizar). Trata-se de 816 páginas de manuscritos engelsianos que nos dão a ideia do poder deste modesto intelectual. Muitos dos textos de juventude de Marx e Engels começam a ser traduzidos e a circular apenas agora! Estamos muito distantes de um mergulho rigoroso na produção destes autores.

Por fim – nestas notas rápidas e carentes de rigor de checagem de sebos e fontes – sobre a circulação das obras de Marx e Engels no Brasil, destaco que até hoje não possuímos uma edição completa da vasta, complexa e importantíssima correspondência que viabiliza perceber Marx e Engels à luz do modo como pensaram e dialogaram sobre as relações que viveram e os problemas do tempo em que viveram. Esta dificuldade de acesso associada à elitizada e cara formação para a leitura fluente em inglês, alemão, italiano ou francês tornam alta a dependência dos brasileiros fora da Universidade (e mesmo dentro dela) ao acesso rigoroso e penetrante à obra dos dois intelectuais e particularmente do “segundo violino”, assim como aos debates que suscitaram pelo mundo.

A (i) diversidade de tradutores (que impossibilita a regularidade na apropriação das categorias centrais da obra); (ii) a seletividade das obras disseminadas (conforme a indicação de sua relevância pelos intérpretes que formaram a base do marxismo no Brasil – Lukács, Gramsci, Lenin, Rosa, Trotski); (iii) a cronologia da sua disseminação que não respeita à cronologia da sua produção; (iv) a ausência até hoje da correspondência completa e (v) o frequente recurso a estudos das obras de Marx e Engels que não recorrem ao materialismo dialético como matriz teórica de referência – têm sido obstáculos importantes para o acesso a este legado no Brasil, e devemos ter a humildade de reconhecê-lo quando reivindicamos estes referencial.

O processo de delimitação do diálogo com vocês inclui informar as fontes com as quais tenho trabalhado: iniciar e aprofundar o estudo do marxismo no Brasil passou pela (i) compilação de Florestan Fernandes Marx e Engels: História e pela cuidadosa tradução de Reginaldo Santana a O Capital que nos permitiu ler esta obra nos anos 80. Quando foi possível aprofundar os estudos, o acesso aos textos disponíveis em língua portuguesa se deu pela coleção em três volumes da Alfa Omega – Obras escolhidas. Apenas durante o doutoramento tive acesso a uma importante coleção publicada no México pela editora Fondo de Cultura Econômica e organizada por Venceslao Roces: Marx e Engels (Obras fundamentales). Foi apenas no Pós-Doutoramento que encontrei um coletivo regular de tradutores que, trabalhando de forma coordenada, (i) vinha se aprofundando no alemão de época; (ii) estudavam os autores com os quais Marx e Engels dialogaram e traduziam as obras com conhecimento de causa. Passei, então, a considerar a coleção Marx e Engels (obras escolhidas), organizada e dirigida por José Barata-Moura, Eduardo Chitas, Francisco Melo e Álvaro Pina, no interior da aliança Editorial Avante! – Edições Progresso e as traduções de Barata-Moura. É pois a partir de duas grandes coleções que tenho estudado, considerando: (i) o caráter de serem estruturadas em torno da compilação das obras, das correspondências dos autores no período e dos comentários dos tradutores no que toca à conjuntura em que as obras são produzidas e (ii) trazer as notas referentes às decisões de tradução assentadas na etimologia histórica. Refiro-me à coleção da Fondo e às traduções Avante! Isto não me deixa isenta de ter na estante todas as traduções disponíveis no Brasil (Abril Cultural, Boitempo, DIFEL/Civilização Brasileira/Martins Fontes, Avante, Editorial Presença, Fondo de Cultura, entre outras.

Ciente dos limites e obstáculos para o acesso às obras, é recomendável que nos apoiemos em um coletivo de tradutores que tenha levado a sério o desafio de investigar cientificamente o pensamento de Marx e Engels para traduzí-lo, que tenham estudado juntos a obra e resolvidos juntos os processos da tradução, produzindo-se certa unidade e procurando ao máximo amenizar as dificuldades de acesso por traduções.

Posta a advertência sobre as imensas dificuldades para esta aproximação, quero discutir (e fundamentar a posição que trago) a forma como compreendemos esta teoria e as categorias que reconhecemos centrais a partir da exposição de Marx e Engels.

A teoria e as categorias que reconheço em Marx e Engels:

Para a compreensão do processo de formação do marxismo de Marx e Engels é recomendável considerar a situação da Alemanha dos 40 primeiros anos do século XIX, que se movimenta contraditoriamente (i) na situação de ser um dos centros do processo de industrialização da Europa, com uma burguesia industrial bem desenvolvida em aliança com os ingleses; (ii) encontrar-se muito próxima da efervescente Paris, portanto sob influência das ideias liberais revolucionárias que ali circulavam, como as regiões do Vale do Rio Reno, que se encontravam entre 420 (Cidade Natal de Marx, Trier) e 560 (Região natal de Engels, Barmen); (iii) encontrar-se politicamente subordinada à Santa Aliança que visava conter o avanço da Revolução Burguesa, ainda organizada sob a forma de principados; (iv) nesta condição contraditória, possuir Universidades bem desenvolvidas, nas quais avançava o desenvolvimento da dialética idealista desde Kant até Hegel, produzindo-se sob a influência de Hegel uma juventude que, dividida entre um hegelianismo conservador do Antigo Regime e um hegelianismo que almejava promover a Revolução Burguesa na Alemanha vai debater especialmente o problema da possibilidade do conhecimento e os limites impostos pelas mentalidades religiosas ao avanço desta capacidade. Os jovens Marx e Engels, ambos de origem Burguesa – Marx filho de um Advogado iluminista e liberal e Engels de uma família de industriários que se encontra confortável com a situação política alemã – vão crescer e desenvolver-se nesta região do mundo em que contrastavam o desenvolvimento da indústria e a pobreza dos trabalhadores, fazendo-os alinhar-se a uma juventude que vai lutar pela revolução burguesa e progressivamente reconhecer no proletariado miserável a classe que exige mudanças radicais, contribuindo para desenvolver o projeto de uma revolução radical que tinha na base este proletariado pobre.

Aprendemos que o legado que herdamos tem sua origem no idealismo alemão, na economia política inglesa e no socialismo utópico francês, mas esta alusão é imprecisa se não considerarmos que este conjunto de proposições visava fundamentar (i) o processo de revolução burguesa; (ii) reconhecia e formulava saídas para a miséria que a revolução industrial burguesa estava promovendo e (iii) procurava saídas para este quadro conjuntural, produzindo uma teoria que, estudando o processo revolucionário francês e inglês (a revolução política e econômica que marca o tempo) explicasse e fundamentasse o próprio movimento revolucionário progressista para além dos limites dos interesses burgueses, em direção de retirar da miséria o proletariado. Daqui surgem a concepção materialista e dialética da história e o comunismo. Marx e Engels desenvolveram uma teoria materialista e dialética de investigação dos processos históricos com vistas a explicar as revoluções nas forças produtivas, nas relações de produção e suas expressões científicas e jurídicas.

Esta teoria (1) é evidente de forma completa em seus termos gerais em “A ideologia Alemã”; (2) está presente na forma de pensar A situação da classe trabalhadora na Inglaterra e em Crítica da filosofia do Direito de Hegel; (3) reaparece no Manifesto de 1848; (3) é exposta por Marx no Prefácio de 1859, no qual traz com clareza o ponto de partida, os processos e o produto teórico dos seus estudos que relacionam as produções da consciência, o aparato jurídico e as formas do Estado como produções subordinadas ao desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção; (3) é retomada em várias passagens de O Capital; (4) reaparecendo sistematicamente nas obras de Engels: Origem da família, da propriedade privada e do Estado e O desenvolvimento do socialismo da utopia à ciência.

A teoria da história na forma como Marx a concebe aparece plena:

A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de fio condutor dos meus estudos, pode formular-se resumidamente assim: na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência. Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social. A transformação da base econômica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais alterações é necessário sempre distinguir entre a alteração material – que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa – das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito, levando-o às suas últimas consequências. Assim como não se julga um indivíduo pela ideia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela mesma consciência de si; é preciso, pelo contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção (MARX, 1977, p. 24-25) [i].

Em Engels, mais tarde, em O Desenvolvimento do Socialismo da utopia à ciência:

A visão materialista da história parte o princípio de que a produção, e logo a seguir à produção, a troca dos seus produtos, são a base de toda a ordem social: de que, em cada sociedade que surge na história, a repartição dos produtos, e com ela a divisão social em classes ou estados, é regulada pelo que se produz e como se produz, e como o produzido é trocado. Portanto, as causas últimas de todas as transformações sociais e revolucionamentos políticos são de procurar, não na cabeça dos homens, na sua progressiva inteligência da verdade e da justiça eternas, mas nas transformações do modo de produção e de troca; são de procurar, não na filosofia, mas na economia da época em questão. A inteligência nascente de que as instituições sociais existentes são irracionais e injustas, de que a razão se tornou contra-senso e o bem mal, é apenas um indício de que nos métodos de produção e nas formas de trocas se foram processando silenciosamente transformações com as quais já não está de acordo a ordem social talhada à medida das condições económicas anteriores. O que é o mesmo que dizer que os meios para a eliminação dos males descobertos têm de se encontrar também – mais ou menos desenvolvidos – nas próprias relações de produção alteradas. Estes meios não são algo a tirar da cabeça, mas a descobrir nos factos materiais que se apresentam por meio da cabeça (ENGELS, 2018, p. 78).

Ou, em Origem da família, da propriedade privada e do Estado

De acordo com a Concepção materialista, o fator decisivo na história é, em última instância, a produção e a reprodução da vida imediata. Mas essa produção e essa reprodução são de dois tipos: de um lado, a produção de meios de existência, de produtos alimentícios, habitação, e instrumentos necessários para tudo isso; de outro lado, a produção do homem mesmo, a continuação da espécie. A ordem social em que vivem os homens de determinada época ou determinado país está condicionada por essas duas espécies de produção: pelo grau de desenvolvimento do trabalho, de um lado, e da família, de outro. Quanto menos desenvolvido é o trabalho, mais restrita é a quantidade de seus produtos e, por consequência, a riqueza da sociedade; com tanto maior força se manifesta a influência dominante dos laços de parentesco sobre o regime social. [...] (ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995)

Posta esta síntese da forma como Marx e Engels concebem a história (na qual os homens agem não como querem, mas de acordo com as condições que lhes foram legadas pelo passado), quais as implicações para a pesquisa em ciências humanas?

Novamente, nos deparamos com alguns problemas sobre os quais é necessário pensar: (1) a referência à herança da dialética de Hegel, faz muitos destacarem as teorias e leis da dialética hegeliana e anunciarem recorrer a uma ou outra destas categorias para fazer suas pesquisas; (2) a leitura dos manuscritos de 1844 e de alguns capítulos de “O capital” deixou muitos debates travados na centralidade do trabalho e no debate do estranhamento, reduzindo a crítica marxista ao indivíduo e à subjetividade; (3) o debate em torno destes temas abandonou uma rigorosa incursão sobre o materialismo consequente, levando a dispersões por uma apropriação idealista das teses de Marx, e aqui, particularmente, ao problema dos idealismos da prática. Quero me deter à forma como estamos compreendendo estas questões, em alguns aspectos, desde 2003, e em outros aspectos, entre 2014 e 2020, com a finalidade de trazer algumas notas fundantes deste debate:

1) Marx e Engels reivindicam a dialética apanhada em ontologia materialista e o materialismo apanhado em gnosiologia dialética, ou seja, (a) quando está em questão a pergunta por aquilo que é o real, é o problema de conhecer com verdade aquilo que está fora e independente da consciência subjetiva que está em questão; e (b) quando está em questão o caminho para conhecer aquilo que é, é o problema de reconhecer as múltiplas determinações constitutivas de um processo de vir a ser aquilo que é, de caráter exterior e anterior à consciência, em constante movimento e mudanças contraditórias e de conjunto que se coloca para quem investiga;

2) Neste processo de apanhar a materialidade da existência anterior à consciência, Marx e Engels chegam ao fato objetivo de que para fazer história (e formular ideações) os homens necessitam antes de tudo estar vivos, e como não encontram a existência pronta, têm de produzi-la. Para muitos, esta tese fundante do materialismo de Marx e Engels aponta para o trabalho, mas a minha hipótese é que aponta para a produção da existência como totalidade de relações, na qual o trabalho (assim como o tempo livre e a formação) é sempre determinado pelas formas existentes de forças produtivas e relações de produção. Não é o trabalho tomado individualmente, mas a totalidade do modo de produção que o determina, que é a relação fundante que deve ser buscada e deve explicar as políticas de distribuição do trabalho, do tempo livre e do direito à formação;

3) Se entendi corretamente o que está em questão na obra destes autores é o desafio de ver de conjunto (e com verdade) as múltiplas determinações de um tempo, de tentar reconhecer as tendências para projetar possíveis intervenções revolucionárias em direção aos interesses dos trabalhadores enquanto o grupo político com interesses radicais naquela conjuntura que é o alvo de Marx e Engels. A crítica da filosofia evidenciou que estava perdida nos debates da consciência, e devia voltar-se para a terra. A crítica da economia evidenciou o seu comprometimento de classe com os interesses burgueses. A crítica das utopias evidenciou que não partiam de bases objetivas reais da luta de classes para reconhecer as classes com cadeias radicais. O desafio era superar os limites do conhecimento disponível que estava perdido em saídas idealistas – que partiam de formulações da consciência isoladas da realidade. A decisão de fazer a crítica da terra colocou nas mãos de Marx e Engels um projeto monumental e eles deram conta deste projeto, nos legando uma pergunta constante por aquilo que é com base materialista e dialética só possível de ser respondida no apanhar das múltiplas determinações. As categorias e leis da dialética foram movidas em direção de reconhecer as contradições em torno da situação da classe trabalhadora inglesa. Foi assim que chegaram à crítica das relações de produção capitalistas e ao Capital como exemplo objetivo de uma análise científica que explicava às classes em confronto e o modo como viviam. O método encontra-se pleno em o capital e me parece o melhor caminho para estudá-lo.

É fundamental que avancemos para compreender a categoria materialista de materialismo e idealismo (Engels e Barata-Moura nos ajudam nesta tarefa). É fundamental que compreendamos a centralidade do método de Marx tanto de “modo de produção da existência” quanto a noção de que “o concreto é síntese de múltiplas determinações” que a consciência deve procurar apanhar na própria realidade. É necessário que compreendamos que nossas análises serão abstratas se não apanharem as múltiplas determinações em que nossos objetos se articulam contraditória e dialeticamente, em constante movimento e mudança de quantidade para qualidade em articulação indissolúvel com a produção da existência como um todo em que estamos todos inscritos. Quando apanhamos as políticas de trabalho, tempo livre e formação, estamos pegando pontas/parte deste todo – árvores num bosque como diria Engels!

Espero que estas notas gerais nos ajudem a iniciar a conversa.

Referências:

BARATA-MOURA, José Adriano. A viragem de 1844. Engels, Marx e a economia política: uma nótula sobre primeiras abordagens. Boletim de ciências econômica. LVII/ 1 (2014) p. 557-632.

BARATA-MOURA, José. As teses das teses. Lisboa: Avante, 2018.

ENGELS, F. A Origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008.

ENGELS, F. Anti-Duhring. Lisboa: Avante!, 2020.

ENGELS, F. Dialética da natureza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

ENGELS, F. Ludwig Feuerbach e a saída da filosofia alemã clássica. Lisboa: Avante, 2019.

ENGELS, F. O desenvolvimento do socialismo da utopia à ciência. Lisboa: Avante, 2018.

ENGELS, F. Origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.

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MARX, K. A miséria da filosofia. São Paulo: Global, 1985.

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MARX, K. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.

MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.

MARX, K. Miséria da Filosofia. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

MARX, K. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.

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PEIXOTO, Elza Margarida de Mendonça. Análise da produção do conhecimento: a prática como direção da crítica. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, Salvador, v. 9, n. 2, p. 5-25, set. 2017. ISSN 2175-5604. Disponível em: <https://periodicos.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/view/23638>. Acesso em: 18 Jun. 2021. doi:http://dx.doi.org/10.9771/gmed.v9i2.23638.

PEIXOTO, Elza Margarida de Mendonça. Investigações sobre o tema da prática: contribuições de José Barata-Moura para o debate da formação pré-profissional de professores. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, Salvador, v. 12, n. 1, p. 228-243, ago. 2020. ISSN 2175-5604. Disponível em: <https://periodicos.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/view/38053/21847>. Acesso em: 18 Jun. 2021. doi:http://dx.doi.org/10.9771/gmed.v12i1.38053

Notas:

[i] "O objeto dos meus estudos especializados era a jurisprudência, à qual me dediquei como disciplina complementar da filosofia e da história. Em 1842-1843, na qualidade de redator da Reinisch-Zeitung, encontrei-me pela primeira vez na obrigação embaraçosa de dar a minha opinião sobre o que é costume chamar-se os interesses materiais. As deliberações do Landtag renano sobre os roubos de lenha e a divisão da propriedade imobiliária, a polêmica oficial que o Sr. von Schaper, então primeiro presidente da província renana, sustentou com a Reinisch-Zeitung sobre a situação dos camponeses do Mosela e, finalmente, os debates sobre o livre-câmbio e o protecionismo, forneceram-me as primeiras razões para me ocupar das questões econômicas. Por outro lado, nesta época em que o desejo de “ir para a a frente” substituía frequentemenete a competência, fez-se ouvir na Reinisch Zeitung um eco do socialismo e do comunismo francês, ligeiramente contaminado de filosofia. Pronunciei-me contra este trabalho de aprendiz, mas ao mesmo tempo, confessei abertamente [...] que os estudos que tinha feito até então não me permitiam arriscar qualquer juízo sobre o teor das tendências francesas. Aproveitando a ilusão dos dos diretores da R. Z., que julgavam suspender a sentença de morte proferida contra o jornal, dando-lhe um caráter mais moderado, preferi deixar o cenário público e retirar-me para o gabinete de estudo. O primeiro trabalho que empreendi para esclarecer as dúvidas que me assaltavam foi uma revisão crítica da Filosofia do Direito, de Hegel, trabalho, cuja introdução apareceu nos Deutsch Französische Jahrböcher, publicados em Paris, em 1844. Nas minhas pesquisas cheguei à conclusão de que as relações jurídicas – assim como as formas de Estado – não podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evolução geral do espírito humano, inserindo-se pelo contrário nas condições materiais de existência de que Hegel, à semelhança dos ingleses e franceses do século XVIII, compreende o conjunto pela designação de “sociedade civil”; por seu lado, a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política. Tinha começado o estudo desta em Paris, continuando-o em Bruxelas, para onde emigrei após uma sentença de expulsão do Sr. Guizot. A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de fio condutor dos meus estudos, pode formular-se resumidamente assim: na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência. Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social. A transformação da base econômica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais alterações é necessário sempre distinguir entre a alteração material – que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa – das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito, levando-o às suas últimas consequências. Assim como não se julga um indivíduo pela ideia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela mesma consciência de si; é preciso, pelo contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca relações de produção novas e superiores se lhe substituem antes que as condições materiais de existência destas relações se produzam no próprio seio da velha sociedade. É por isso que a humanidade só levanta os problemas que é capaz de resolver e assim, numa observação atenta, descobrir-se-á que o próprio problema só surgiu quando as condições materiais para o resolver já existiam ou estavam, pelo menos, em vias de aparecer. Friedrich Engels, com quem, desde a publicação do seu genial esboço de uma contribuição para a crítica das categorias econômicas nos Deutsch-Franzosische Jahrbucher, tenho mantido por escrito uma constante troca de idéias, chegou por outras vias (confrontar a sua Situação das classes operárias na Inglaterra) ao mesmo resultado, e quando, na primavera de 1845, veio se estabelecer também em Bruxelas, resolvemos trabalhar em conjunto, a fim de esclarecer o antagonismo existente entre a nossa maneira de ver e a concepção ideológica da filosofia alemã; tratava-se de fato de um ajuste de contas com a nossa consciência filosófica anterior. Este projeto foi realizado sob a forma de uma crítica da filosofia pos-hegeliana. O manuscrito, dois grandes volumes in-octavo, estava há muito no editor na Vestefália, quando soubemos que novas circunstâncias já não permitiam a sua impressão. De bom grado abandonamos o manuscrito à crítica corrosiva dos ratos, tanto mais que tínhamos atingido o nosso fim principal, que era enxergar claramente as nossa ideias. [...] Os pontos decisivos das nossas concepções foram cientificamente esboçados pela primeira vez, ainda que de forma polêmica, no meu texto contra Proudhon publicado em 1847: Miséria da Filosofia, etc. [...] [...] os meus estudos econômicos [...] só pude retomar em 1850, em Lonfres. A prodigiosa documentação sobre a história da economia política reunida no Museu Britânico, o posto favorável que Londres oferece para a observação da sociedade burguesa e, por último, o novo estágio de desenvolvimento em que esta parecia entrar com a descoberta do ouro californiano e australiano, decidiram-me a recomeçar e a estudar a fundo, com espírito crítico, os novos materiais [...] as minhas opiniões [...] são o resultado de longas e conscienciosas pesquisas" (MARX, 1977, p. 24-25).

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