A PRÁTICA NAS TESES SOBRE FEUERBACH – UM MARCO FUNDADOR
- Elza Peixoto

- 8 de mai
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Na exposição que fizemos das características dos textos que são referência para o curso de Licenciatura em Educação Física da FACED, anotamos, ainda em caráter muito rudimentar, os elementos da construção categorial que vai sendo elaborada pelos autores do campo da educação, que destacamos estar marcada por polissemia e paráfrase. A título de exemplos, cito análise de PEIXOTO (2021: p. 133-155; p. 170-187; p. 190 – 207) sobre a diversidade de processos em que a elaboração sobre a prática se encaminha em obras que reivindicam a mesma matriz teórica. Destacamos que, mesmo com este caráter polissêmico, a ênfase na prática como o ponto de partida – uma reivindicação frequente no âmbito das proposições que reivindicam o materialismo dialético – uma preocupação evidente e constante em todos os três textos analisados na obra de Peixoto (2021, p. 133-207), tem na raiz uma mesma matriz original: “As Teses sobre Feuerbach”!
É, pois, este o nosso ponto de partida neste curso: As teses sobre Feuerbach de Marx, que apropriaremos a partir da tradução e dos comentários de José Barata-Moura. O nosso objetivo nesta fase do curso é apanhar nas notas originais de Marx os rudimentos ontognosiológicos de base do materialismo dialético que vão amadurecendo em direção a uma perspectiva materialista e dialética da prática.
TESE | NOTAS PESSOAIS |
1 O defeito principal de todo o materialismo até agora (incluindo o de Feuerbach) é que o objecto [der Gegenstand] – a realidade [efectiva, die Wirklichkeit], [a] sensibilidade [Sinnlichkeit] – é apreendido apenas sob a forma do objecto [de representação, Objekt] ou da intuição [sensível, Anschaung]; não [é apreendido], porém, de um modo não subjectivo [nicht subjektiv], como actividade sensivelmente humana [sinnlich menschliche Tätigkeit], [como] prática [Praxis]. Daí, o lado activo [haver sido] abstractamente desenvolvido, em oposição ao materialismo, pelo idealismo – o qual, naturalmente, não conhece a actividade [efetivamente] real, sensível, como tal. Feuerbach quer objectos sensíveis [sinnlich Objekte]: de um modo [efectivamente] real [wiklich], diferente dos objetos de pensamento [Gedankenobjekt]; mas ele não apreende a própria atividade humana como actividade objectiva [als gegenständliche Tätigkeit]. Na “Essência do Cristianismo”, ele só considera, por conseguinte, o comportamento teorético [das theoretische Verhalten] como o [comportamento] autenticamente [adcht] humano, enquanto a prática é apreendida e fixada apenas na sua forma fenomênica sordidamente judaica [schmutzig jüdische Erscheinungsform]. Ele não concebe, por conseguinte, a significação da actividade “revolucionária”, da [actividade] ‘praticamente crítica’ [praktisch-kritische Tätigkeit]. (MARX, 1ª tese sobre Feuerbach, traduzido e citado por BARATA-MOURA, As teses das teses, Lisboa: Avante!, 2018)
| 1. Há nesta primeira tese uma crítica ao materialismo em geral, que até então concebe o objeto (a realidade efetiva, a sensibilidade) “sob a forma do objeto e da intuição”, e não “de um modo não subjetivo” como “atividade sensivelmente humana, como prática”. Marx dedicou-se ao estudo do materialismo, que aparece especialmente relatado em “A sagrada família”, e pode, após esta revisão, referir-se de forma geral ao materialismo até então existente. 2. Há aqui uma leitura dialética que evidencia o conhecimento como relação sujeito sensível/objeto. E a crítica ao materialismo de até então é justamente a redução da realidade e do objeto à subjetividade (sensível, por meios dos órgãos dos sentidos e intuitiva). 3. Há um outro aspecto que o materialismo até então está deixando de fora: a “actividade sensivelmente humana [sinnlich menschliche Tätigkeit], [como] prática [Praxis][1]. 4. Este deixar de lado a prática, ou seja, este concentrar-se exclusivamente na subjetividade (a apropriação do objeto no limite da percepção pelos órgãos dos sentidos), promoveu o desenvolvimento do idealismo. Nas palavras do Marx, “Daí, o lado activo [haver sido] abstractamente desenvolvido, em oposição ao materialismo, pelo idealismo – o qual, naturalmente, não conhece a actividade [efetivamente] real, sensível, como tal. Nesta passagem a noção de abstração pode estar assumindo uma dupla conotação: (i) de afastamento da realidade (por isto a afirmação de que os idealistas “não conhecem a actividade [efetivamente] real, sensível, como tal”; (ii) de apropriação parcial das múltiplas determinações que tornam possível um conhecimento concreto, a que Marx referir-se-á na “Introdução à Crítica da economia política”[2]. 5. Para nós, é fundamental compreender o sentido que Marx atribui à expressão “comportamento teorético”. 6. Na crítica a Feuerbcah Marx está afirmando que este considera como típico daquilo que é humano o “comportamento teorético”, “enquanto a prática é apreendida e fixada apenas na sua forma fenomênica sordidamente judaica”. Aqui, é fundamental compreender o que Marx está chamando de “forma fenomênica” e o sentido desta expressão “sordidamente judaica” que compreenderemos melhor com o estudo da obra “A questão judaica”. 7. Por fim, na contraposição crítica ao modo de ver de Feuerbach, que o leva a dar o salto qualitativo na análise, afirma: “Ele não concebe, por conseguinte, a significação da actividade “revolucionária”, da [actividade] ‘praticamente crítica’ [praktisch-kritische Tätigkeit].” Esta “[actctividade] praticamente crítica” que Marx afirma que Feuerbach não conhece, já assume aqui a conotação de uma atividade humana (prática) que transforma aquilo que é a realidade exterior fora da consciência. |
Vejamos agora como esta questão vai aparecer na análise que Barata-Moura fará desta primeira tese.
1. A anotação crítica que refere a um “materialismo defeituoso”, remete-se ao “campo determinado” da ontologia assinalando uma carência no debate, ou seja, nesta nota Marx anota “a premência de compreender” que o “defeito” do materialismo até então (Barata-Moura destaca a expressão completa: “todo o materialismo até agora”) “mora” exatamente na “falta que, no materialismo até agora, afecta (e infecta), precisamente, o seu posicionamento ontológico. (BARATA-MOURA, 2018, p. 111-112). Comentário meu: qual a falta, o que está faltando, que acaba por comprometer o posicionamento ontológico do materialismo até então existente?
2. É precipitado atribuir a esta anotação crítica uma “recusa [ou afastamento] do materialismo”[3];
3. Pelo contrário, Barata-Moura vai justamente anotar que “vai haver lugar para um outro materialismo” (BARATA-MOURA, 2018, p. 112). Anota exatamente que “Marx “passa” ao materialismo [...] porque reconfigura – pela base, e no teor – a própria categoria de materialismo” (BARATA-MOURA, 2018, p. 112).
4. Nesta reconfiguração, o novo materialismo de Marx é assim anotado por Barata-Moura:
A materialidade do real, no registo filosófico, denota a subsistência ontológica do ser – com as relacionalidades de que se tece e entretece –, mas independente das formas de relação em que apareça um sujeito determinado (egóico, plural, impessoal); não tem, portanto, como condição ontológica de possibilidade: uma consciência que o represente, um desejo que por ele anseie, uma vontade que o queira, uma linguagem que o exprima, uma ação que o module e dinamize (BARATA-MOURA, 2018, p. 112)[4].
Esta anotação primordial evidencia que a substância ontológica do ser existe independente das formas de relação em que apareça um sujeito determinado. Aquilo que é o ser “não tem, portanto, como condição ontológica de possibilidade: uma consciência que o represente, um desejo que por ele anseie, uma vontade que o queira, uma linguagem que o exprima, uma ação que o module e dinamize”. Comentário: Ainda que aquilo que é possa vir a ter em sua constituição a relacionalidade, a existência do ser como substância anterior a esta ação não depende desta relacionalidade. E aqui é fundamental problematizar a diferença entre “por no mundo” e transformar aquilo que já está lá no mundo, anterior à minha relação com aquele ser.
5. Explora cuidadosamente o significado com que Marx maneja o léxico objeto, que na língua alemã apresenta-se como “Gegen-stand “refere aquilo que nos está de pé contraposto”” e como Objekt, significa “aquilo que jaz ai, diante” (BARATA-MOURA, 2018, p. 113). Destaca neste processo que “em qualquer idioma subsiste uma controvertida questão, que não é de foro linguístico, mas de natureza ontológica e onto-gnosiológica” (BARATA-MOURA, 2018, p. 113)., qual seja:
Na consciência cognoscente representamos coisas, processos, relações, na forma intencional do objecto que, nesse plano relacional subjectivo, nos está diante, como pólo ao qual um atender se volta. É o “objecto” enquanto presença no campo da consciência como ideato. Por assim dizer, a “objectualidade” do objecto.
Mas – e para o materialismo este ponto é decisivo -, há também a objectividade do objecto enquanto detentor de um estatuto de materialidade próprio que lhe advém da presença a um mundo que, podendo embora ser representado, independe de, e prima sobre, os resultados ideiais na representação aparecentes. (BARATA-MOURA, 2018, p. 114)
Explicita como traço fundamental da “teoria materialista e dialética do conhecimento”, que “não basta admitir (...) que todos os objetos de uma experiência possível dispõem de uma contrapartida material no mundo exterior” (BARATA-MOURA, 2018, p. 115). Faz-se indispensável “inquirir também o retorço processo de mediação pelo qual as determinações (materialmente fundadas) dos entes materiais se apresentam transpostas ou traduzidas num marco de “idealidades””. Complementa afirmando que “é neste sentido que a pesquisa em torno do “reflexo”” [...] recobre todo o complexo feixe de questões que se prendem com a propriedade de os sistemas materiais reflectirem (...) outros sistemas materiais” (BARATA-MOURA, 2018, p. 115-116).
Informa
Na literatura filosófica em alemão redigida, quando se trata de discorrer acerca destas diferentes acepções em que “objecto” é susceptível de significar, por vezes (mas nem sempre, isto é, sem a constância de uma regra): Gegestand denotará a dimensão onticamente objectiva da coisa a conhecer, enquanto Objekt indicará o termo objectual na representação intencionalmente visado. (BARATA-MOURA, 2018, p. 116).
E conclui afirmando que nas “Teses”, o objeto “refere-se ao ente que, fora da consciência, está” (BARATA-MOURA, 2018, p. 116).
6. No parágrafo 3 das notas sobre a 1ª tese, é a expressão realidade efectiva que passa a ser explicada como uma opção de tradução a que Barata-Moura recorre face ao “conteúdo teórico distintivo” com que a expressão Wirklichkeit aparecerá nos textos de Hegel e Marx, com o sentido dialético de uma totalidade. (BARATA-MOURA, 2018, p. 117). Destaca que Realität “corresponde àquela “pobreza” inicial – àquela “simples imediatidade” (einfache Unmittelbarkeit) – de um ente inconcebido no seu processo de manifestação”. Por sua vez ““a realidade efectiva” (die Wirklichkeit) compreende a totalidade plenamente desenvolvida, e existencializada das determinações de algo” (BARATA-MOURA, 2018, p. 117-118). Em Witklichkeit temos o múltiplo (na unidade que constitui), e o uno (com a multiplicidade deveniente que encerra). (BARATA-MOURA, 2018, p. 118).
7. Sobre a sensibilidade – no âmbito da teoria do conhecimento – “designa uma determinada faculdade que permite aos seres humanos acolher numa consciência representativa, todo um leque de impressões veiculadas pelos seus dispositivos estéticos” (BARATA-MOURA, 2018, p. 119). Barata-Moura vai recuperando a história do “fundo matricial” que o termo carrega desde os gregos, passando por Platão e Aristóteles. Neste “fundo matricial” Kant constrói a categoria sensualitas, Sinnlichkeit: Na Dissertação de 1770, Barata-Moura recupera: “A sensibilidade [sensualitas] é a receptividade [receptivitas] de um sujeito pela qual é possível que o seu próprio estado representativo seja afetado de certo modo pela presença de um qualquer objecto”. Em Crítica da razão pura: “A [...] capacidade de receber representações, segundo a maneira como nós somos afetados pelos objetos chama-se sensibilidade” (BARATA-MOURA, 2018, p. 119-120). Comenta: “em qualquer das eventualidades quanto à definição, estamos, por conseguinte, nos domínios de uma faculdade subjetiva” (BARATA-MOURA, 2018, p. 120).
Barata-Moura observa que as Teses referem a outro “apeadeiro”. “No pensamento de Ludwig Feuerbach, “em entrelaçamento com esta acepção corrente (que à faculdade de sujeito se refere), deparamos também, e de certo modo que lhe é característico, com uma usança extensiva do termo, de maneira a incluir no seu reduto a própria objetividade que estesicamente se recebe e acolhe”. Em Feuerbach, a objetividade refere “Ao conjunto dos objectos sensíveis de que os sentidos dão notícia – aquilo que para ele constitui “a realidade” (die Wirklichkeit) – Feuerbach chama igualmente: “sensibilidade” (Sinnlichkeit). (BARATA-MOURA, 2018, p. 120). Barata-Moura desenvolve: (Ver As Teses das Teses, p. 121 “Ao pôr o acento nesta “equivalência”... “Feuerbach pretende assentar um enfoque, sem dúvida, de “pendor materialista”.). “Ele quer falar de coisas que realmente pertencem a um mundo exterior que nos afeta “sensivelmente”, e que, à partida, se não dissolve na “insubstancialidade” de uns meros ideatos.” Barta-Moura alerta entretanto, que este encaminhamento feuerbachiano “não se encontra – tecnicamente – isenta dos depósitos residuais herdados de uma certa matriz idealista (indesejada)” (BARATA-MOURA, 2018, p. 121).
Barata-Moura anota “para Marx nem toda a actividade, sem mais qualificativo, é prática; nem, por outro lado, na prática, apenas a vertente subjetiva avulta” (BARATA-MOURA, 2018, p. 123). Prossegue: “Considerar a prática de um modo não subjetivo significa, por conseguinte, não a restringir à dimensão subjectiva (que igualmente com-porta), mas compreender como ela realmente se materializa numa reconfiguração de “coisa” – de “relações”, e de processos – efectivamente reais” e complementa a seguir: “Significa que, também em muitas daquelas figuras que integram o domínio ontologicamente objetivo, há prática humana materialmente incorporada” (BARATA-MOURA, 2018, p. 123). E aqui Barata-Moura destaca o sentido de prática que Marx está elaborando:
Em causa está a caracterização da prática, não como o termo designativo de uma qualquer acção em geral, mas tão só enquanto aquela atividade humana que pro-duz resultados sensíveis, ou sensivelmente constatáveis – mesmo no mundo dos objectos (pensados ou sentidos) -, na medida em que ela, materialmente, transforma o viso das próprias realidades. (BARATA-MOURA, 2018, p. 124).
E aqui, é muito interessante tomar o conceito de trabalho em “O Capital”:
8. Barata-Moura acompanha o problema da relação onto-gnosiológica no debate do idealismo alemão (Kant, Fichte, Hegel), explicitando que esta recuperação que faz conforma-se como uma rápida passagem marcada pelo “alinhavo de algumas indicações impressionistas” (BARATA-MOURA, 2018, p. 124-138), para arrematar afirmando que este caminho percorrido de revisão de matrizes visa “avivar aquele património de filosofemas que respaldam a observação de Marx quanto ao relevo conferido à actividade pelo idealismo dos tempos modernos” (BARATA-MOURA, 2018, p. 138). Prossegue:
Tenha-se, todavia, presente que a “acção” – e mesmo a dialéctica da “acção”, que em muitas destas concepções se reflecte – nos surgem pensadas primordialmente dentro de uma moldura em que o paradigma da consciência impera como modelo reitor.
Daí a pertinência do comentário [de Marx, grifo meu] de que a vertente “activa” apenas foi desenvolvida “abstratacmente” (abstrakt), isto é: como um lado separado – e, enquanto condição primordial, autonomizado – relativamente às contexturas materiais onde começa por constituir-se, mesmo enquanto actividade de um sujeito humano. (BARATA-MOURA, 2018, p. 138-139).
9. No parágrafo 7 (p. 139-162), Barata-Moura vai explorar um pouco mais as “representações correntes de materialismo” até então vigentes. Principia destacando o fragmento da crítica de Marx que anota que até o momento da escrita da primeira tese, “[...] esta incidência idealista sobre “o lado activo” (die tätige Seite) se processou, em modo algo “reativo”, “em oposição ao materialismo””. Barata=Moura anota: “O confronto requer aclaração” particularmente “em questões à ontologia atinentes” (BARATA-MOURA, 2018, p. 139). Destaca que vai desenvolver a referência a dois aspectos entrelaçados: (i) “a inflexão doutrinal em que o próprio materialismo acabou por incorrer, ao longo das vicissitudes conturbadas dos seus combates”; (ii) e a necessidade de reconhecer “as representações correntes do materialismo que, provindas do armazém idealista, impregnavam a feição generalizada dos contrastes produzidos” que acabaram por encobrir “uma incompreensão efectiva do alcance material da prática”(BARATA-MOURA, 2018, p. 139-140).
Barata-Moura recupera então os estudos de Marx que desembocam em A sagrada família (1845). O autor traz uma citação de A sagrada família para destacar a compreensão de Marx de que “entre as propriedades nativas da matéria”, “o movimento é a primeira e a mais eminente”. Diz Marx:
De entre as propriedades nativas da matéria, o movimento é a primeira e a mais eminente: não apenas como movimento mecânico e matemático, mas mais ainda como impulso, espírito vital, força expansiva, como tormento – para usar a expressão de Jacob Böhme –, da matéria. As formas primitivas da última [isto é: da matéria] são forças essenciais vivas, individualizantes, que lhe são inerentes, e que produzem diferenças específicas. Em [Francis] Bacon como seu primeiro criador, o materialismo abriga em si, ainda de um modo ingênuo, os germes de um desenvolvimento omnilateral. A matéria sorri num brilho poético-sensível ao ser humano todo. (BARATA-MOURA, 2018, p. 140-141, traduzindo e citando o Marx de A Sagrada Família).
Barata-Moura vai prosseguir acompanhando as notas de Marx sobre o desenvolvimento do materialismo em Hobes, para em seguida apanhar o materialismo tal como era compreendido pelos idealistas. Na perspectiva dos idealistas, “[...] o “materialismo” assentaria por inteiro numa passividade consentida que se verga, e deixa subjugar pelo poder das coisas” (BARATA-MOURA, 2018, p. 143). Transita por Kant, por Fichte, para mostrar como o materialismo é apanhado a partir de “uma equivalência [...] estabelecida entre a categoria de “dogmatismo” (remodelada a partir de Kant, a fim de albergar conotações ontológicas) e a categoria de “materialismo” (assimilada, de alguma maneira, a alegados traços “spinozistas” que, recentemente, o mundo culto da Alemanha voltara a discutir)”. No idealismo de Fichte, segundo Barata-Moura,
O “materialista” é-nos apresentado, assim, sob as vestes daquele dogmático que sucumbe a um “necessitarismo” de fora imposto, e que, por conseguinte, se revela de todo incapaz de exercer a autonomia (instituinte) da sua liberdade.
Nesta moldura, o “materialismo” devém uma crença “fatalista” na determinação do conhecimento – e da actividade própria – pelas coisas “exteriores”, investidas de um ilusório estatuto de “independência” que de todo lhes não assistiria, mas que apenas é o resultado daquela passividade que desde o fundo impregnaria esse figurino teorético-comportamental. (BARATA-MOURA, 2018, p. 146-147).
Comenta em síntese Barata-Moura:
Submetida a regime de marés imolatórias, a ontologia perde o seu estatuto basilar. Tornada condição instrumental dos comportamentos, acaba, deste modo, por resolver-se num eticismo (BARATA-MOURA, 2018, p. 146-147).
Pontua que em Hegel, o itinerário tem como ponto de partida (i) a necessidade de transcender a consciência representativa como terreno imediato de posição do problema, superando “o triunfo da unilateralidade que desatende a unidade concreta e deveniente do “Espírito””; e o entendimento acerca da (ii) “a imprescindibilidade de conceber a unidade dialéctica do real” (BARATA-MOURA, 2018, p. 150-152). Barata-Moura destaca como a crítica de Hegel ao idealismo até então desenvolvido vai viabilizar as notas críticas de Marx ao materialismo até então existente, e à “necessidade de ontologicamente recolocar a abordagem do problema (bem como a via prática do seu desfecho) numa base ela mesma transformada” (BARATA-MOURA, 2018, p. 150-152).
Anota a contribuição de Feuerbach que, no combate a um pensar essencialista, “propõe [...] uma atitude acolhedora daquele variegado múltiplo que à intuição dos sentidos se nos oferece, numa imediata frescura existencial”. Aqui, entretanto, “a componente “materialista” surge sintomaticamente arrumada na coluna do passivo”.” (BARATA-MOURA, 2018, p. 150-152).
Por fim, pontua os desenvolvimentos de uma categoria materialista de materialismo na obra de Marx (BARATA-MOURA, 2018, p. 159-162).
10. No parágrafo 8, Barata-Moura retoma (a) a crítica de Marx que destaca: “Feuerbach quer ter imediato acesso a objectos sensíveis, isto é, a uma dada ordem de entes que, “de um modo efectivamente real” [...] sejam “diferentes” dos meros “objectos de pensamento” Marx (BARATA-MOURA, 2018, p. 162). A partir desta crítica, destaca o foco do interesse de Feuerbach: por um lado, (i) “pretende salvaguardar para os objectos, um estatuto de independência ôntica, recusando a sua hegeliana dissolução (dialéctica) no “conceito”, que lhes exprime a concretude mediada” Marx (BARATA-MOURA, 2018, p. 162-1163); (ii) por outro “visa combater o correlativo entendimento hegeliano de que o ser humano se define, antes de mais, pelo “pensamento”, e não pela “sensibilidade” que lhe rege a panóplia dos afectos” Marx (BARATA-MOURA, 2018, p. 163-164). Barata-Moura destaca que Marx “se apercebe” de uma originária preocupação ontológica” no pensamento de Feuerbach (BARATA-MOURA, 2018, p. 163).
11. No parágrafo 9, Barata-Moura destaca que a 1ª tese, Marx, ao identificar as “faltas”, as ausências do materialismo até então, Marx “abre passagem aos remodelamentos necessários na mobília do materialismo” (BARATA-MOURA, 2018, p. 164). De imediato Feuerbach não percebe que “no próprio objecto da certeza sensível imediata há também depósitos de história” e “como pode haver – não apenas na sua vertente “subjectiva” – trabalho humano incorporado nessa materialidade que em devir se encontra” (BARATA-MOURA, 2018, p. 159-162). Barata retoma em “A ideologia alemã”, a passagem na qual o limite de Feuerbach é explicitado (BARATA-MOURA, 2018, p. 165-166, ler juntos).
12. No parágrafo 10, Barata-Moura recupera a glorificação do comportamento teorético que caracteriza o pensamento de Feuerbach na obra “A essência do cristianismo” (BARATA-MOURA, 2018, p. 165-175; ver especialmente a p. 171-172).
13. No parágrafo 11, Barata-Moura destaca a atenção de Marx à problemática (antiga). Do ser e do aparecer, realizando, em caráter de introdução “um esboço telegráfico de uma “arqueologia”” (BARATA-MOURA, 2018, p. 176-178). Retoma o problema em Kant, destacando neste uma proximidade maior com o contexto das teses. Destaca as formulações de Hegel neste território para afirmar que em Marx (nas Teses) ocorre o acolhimento da perspectiva dialética desenvolvida por Hegel (BARATA-MOURA, 2018, p. 180-181). Ler juntos p. 181. P. 184-189).
Esta recusa de confinamento à simples imediatez constatada determina, sim, que o “facto” que uma dada “forma fenomênica” retrata não vigora por si num isolamento estanque, que do panorama da fenomenalidade fazem parte “manifestações” múltiplas e contraditórias, que o escopo da compreensão que se demanda não reside numa narrativa prolixa do fragmentário, mas numa articulação, dispondo de fundamento material, capaz de tornar inteligível, nas suas vicissitudes múltiplas, a congruência una dos processos.
Todas estas questões começam por pertencer ao foro ontológico, na medida em que se prendem com a materialidade do real, surpreendida no dialecto devir retorso das suas instanciações múltiplas aparentes. No entanto, elas requerem igualmente uma adequada reflexão no plano do saber, sobremaneira, daquele que assuma por tarefa dar delas fundamentadamente conta.
A correspondente consciência do necessário rebatimento epistemológico destas “complicações” ontológicas surge expressa num comentário que, em O Capital, ocorre, a propósito das abordagens características dos “economistas vulgares”:
“Toda ciência seria supérflua, se a forma fenomênica e a essência das coisas coincidissem imediatamente”.
“Aquilo que é” aparece, mas não é tão-só tal como parece.
[...]
O saber fundamentado vai além daquilo que de pronto está manifesto. [...].
O saber fundamentado – [...] procura conceber a “conexão interna” [...] das determinações que afeiçoam o viso, e a pulsação, daquilo que transitivamente aparece.
Ou seja, constatar não significa compreender.
[...]
“A verdade científica é sempre [um] paradoxo, se julgada pela experiência de todos os dias, que apanha só as aparências enganadoras [...] de coisas” (Barata-Moura, 2018, p. 188).
14. No parágrafo 12 Barata-Moura destaca que nas Teses Marx se pronuncia contra “esta depreciação “instrumentalista” da prática em geral”, na qual “ela fica confirnada a um tosco patamar rasteiro” (BARATA-MOURA, 2018, p. 191). Recupera a questão judaica para sinalizar um outro traço desta crítica marxiana à concepção de prática em Feuerbach: está em causa a crítica a “uma sociedade de implantação burguesa real, em que a “teoria” invocada será “cristã” (isto é, idealizadamente universalista), mas onde a “prática” quotidiana efectiva é inteiresseiramente egoísta (ou seja, “judaica”) (Barata-Moura, 2018, p. 192).
15. No parágrafo 13, Barata-Moura destaca que o posicionamento de Feuerbach “montado sobre uma deficiente visão dos problemas, e um manejo unilateral das categorias chamadas a intermediar o respectivo aclaramento, determina incompreensões de vulto” (Barata-Moura, 2018, p. 188). Precisa determinações lógicas daquilo que é concebido como materialismo na dialética de Marx (Barata-Moura, 2018, p. 193). Da mesma forma anota que “o revolucionamento é ontologicamente constitutivo da própria realidade” (Barata-Moura, 2018, p. 193). “A actividade revolucionária é crítica: praticamente, porque ataca e transforma, no efectivo plano de materialidade em que se estabelecem, as realidades de um mundo circundante” (Barata-Moura, 2018, p. 193-194).
CONFERIR CUIDADOSAMENTE TODAS AS CITAÇÕES
[1] Barata-Moura aqui usa as expressões prática [Praxis]. Investigar onde se aproximam e se distinguem.
[2] Estudar com Barata-Moura se estas duas hipóteses procedem.
[3] Barata-Moura cita aqui a obra de MAX ADLER (Marxismus und Materialismus) e Michel Henri (Marx, Introduction) como referências que portam esta interpretação. Ou Jean Granier (Pensar la práxis). BARATA-MOURA, notas 1, 2 e 3 das páginas 112-113).
[4] Aqui, Barata-Moura abre o debate com Enrique Dussel, no aspecto de uma definição de que “o trabalho seria o a priori da matéria” (BARATA-MOURA, 2018, p. 112, nota 5).



