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Blog Crítica Prática

Marxismo e a luta socialista da atualidade e o legado de Engels

Elza Peixoto


Saúdo a iniciativa deste Pré EPMARX, na particular condição de quem partilha e trabalhou para construir o projeto de reunião de grupos de pesquisa marxistas nos EBEM, na Germinal e na ABEM. Na atual conjuntura de genocídio da classe trabalhadora brasileira; de estrangulamento do ensino/pesquisa e extensão públicos na forma de cortes orçamentários graves à Universidade; de ataques à liberdade de cátedra (e difamação do marxismo e do comunismo), é fundamental que os grupos de estudos marxistas se articulem para defender este legado e projetar ações para a sua propagação – que, ultrapassando os limites de um campo diverso de correntes que disputam o lugar de legítimos herdeiros deste legado – levem à construção de uma Universidade Popular!

Começo por assinalar que nesta mesa o que temos que estabelecer são as conexões entre três termos distintos: (a) a homenagem a Friedrich Engels (1820-1895), (b) o marxismo e (c) a atualidade das lutas socialistas. Quando procuramos pela forma histórica concreta em que esta relação se apresenta, entretanto, evidencia-se que nos encontramos em território de imensas polêmicas, (i) por que há quem atribua a Engels um papel menor na produção da concepção materialista e dialética da história e até mesmo insinue que Engels desvirtuou o legado de Marx ; (ii) porque o marxismo porta polissemia com uma diversificada gama de correntes de interpretação e desenvolvimentos que não reconhecem de todo os fundamentos reivindicados por Marx e Engels; (iii) porque a luta socialista cinde-se em diversas organizações com programas que em muitos casos não dialogam entre si e chegam mesmo a romper com a perspectiva da revolução conformando-se num horizonte restrito de reformas.

Pelo exposto, entro nesta mesa posicionada na defesa dos supostos construídos por Marx em relação com Engels, e na tomada destes supostos como referências para as notas sobre os desafios e as saídas para a luta socialista na atualidade conforme as diretrizes do Partido Comunista Brasileiro de que sou militante de base. Faço isto na expectativa de pontuar a partir das lições de Engels, aquilo que reconheço como desafio para os que seguem o legado do materialismo histórico-dialético que tenho assumido movimentar por dentro do Grupo de Estudos e Pesquisas Marxismo e Políticas de Trabalho e Educação – M.T.E FACED UFBA.

A posição que assumo nesta mesa respeita que o marxismo é diverso sendo inviável (do ponto de vista do rigor acadêmico e político) arvorar-se a falar em nome de conjunto tão abrangente de matrizes que, muitas vezes, têm em comum apenas (i) a tomada do pensamento de Marx e Engels como ponto de partida; (ii) a partir de sua apropriação por um determinado intérprete brasileiro ou estrangeiro; (iii) intérpretes que muitas vezes tiveram (por condições diversas) acesso parcial às obras de Marx e Engels em virtude dos problemas em que o acesso a este legado estão envolvidos, particularmente, entre a morte de Engels em 1893 e a primeira metade do século XX.

Demarcados os limites da minha fala, quero recuperar (neste curto tempo de 20 minutos) que (1) o legado revolucionário deixado por Marx e Engels são as ferramentas para estudar os processos históricos, (2) que ambos colocaram este legado a serviço da ruptura com as cadeias radicais que oprimem os trabalhadores nas relações de produção capitalistas; (3) e que este deve ser o nosso horizonte de reorganização para o enfrentamento das lutas do nosso século. Aqui, entendo que os grupos de pesquisa marxistas assumem particular relevância!


Engels


Entre as notas que o tempo nos permite fazer, destaco – considerando-se a volumosa MEGA – que até este momento não está garantido o acesso ao conjunto da obra dos fundadores do marxismo . A (i) diversidade de tradutores (que impossibilita a regularidade na apropriação das categorias centrais da obra); (ii) a seletividade das obras disseminadas (conforme a indicação de sua relevância pelos intérpretes que formaram a base do marxismo no Brasil) que nos impossibilita até hoje de conhecer as obras completas do jovem Engels em língua portuguesa; (iii) a cronologia da sua disseminação que não respeita à cronologia da sua produção; (iv) a ausência até hoje da correspondência completa e (v) o frequente recurso a estudos das obras de Marx e Engels que não recorrem ao materialismo dialético como matriz teórica de referência – têm sido obstáculos importantes para o acesso a este legado.

É sob esta condição que encontramos um vasto debate em torno da colocação de Engels como um “segundo violino”. A expressão, aliás, remete-se à metáfora construída pelo próprio Engels (com profunda modéstia), em carta de 15 de outubro de 1884 a Johann Philipp Becker .

A vantagem de entrar no marxismo pelo estudo das obras dos dois autores – mesmo com a irregularidade no fluxo da tradução de suas obras – é que podemos julgar por nós mesmos (e ser surpreendidos) com o engano a que a modéstia de Engels pode nos levar. Marcadas pelas polêmicas quanto a uma suposta aproximação com o positivismo, as obras de Engels que foram publicadas até aqui trazem apenas um pequeno lampejo de toda a contribuição do autor no processo do (i) despertar de Marx para a economia política e a própria situação da classe trabalhadora na indústria têxtil inglesa, assim como (ii) na capacidade de reconhecer, analisar e interpretar o intenso processo revolucionário que fermenta a Europa Central em que ele e Marx habitam, circulam como exilados e militam.

O conhecimento da efetiva contribuição do “segundo violino” ao desenvolvimento do marxismo e da organização dos trabalhadores no século XIX, demanda o estudo das obras escritas entre 1839 e 1844, quando vemos um Engels com história própria a chegar, nas palavras de Marx “[...] por outras vias (confrontar a sua Situação das classes operárias na Inglaterra) ao mesmo resultado” que ele (MARX, 1977, p. 25). No Prefácio à Crítica da economia Política (tornado público em 1859 e divulgado no Brasil pela Global desde 1946), Marx refere-se claramente: (a) ao “genial esboço de uma contribuição para a crítica das categorias econômicas” (Escrito por Engels entre 1843-1844, portanto, aos 23 anos); (b) à constante troca de ideias entre ambos; (c) a resultados similares e independentes a que ambos chegaram que (d) os levaram, a partir de 1845, à parceria de trabalho que produz o “ajuste de contas com sua consciência anterior”, e os fundamentos que vão estar na base de toda a obra de ambos até o final de suas vidas.

Filho da burguesia industrial de Wupertal região da Renania; criado na disciplina do pietismo contra a qual desde muito cedo se rebela; vemos Engels enxergar a situação dos trabalhadores desde os seus 19 anos, nas chamadas “Cartas de Wupertal” nas quais já descreve os impactos ambientais e humanos das fábricas. Este jovem burguês que conhecia o conforto estava atento à vida daqueles que estavam na base da riqueza que usufruia. Estão no seu trajeto diário e não lhe são invisíveis! Aos 19 anos olha criticamente a periferia da região em que habita e para as relações que estão estabelecidas entre o clero, a burguesia, os trabalhadores e as fábricas, quando já reconhece profundas contradições que desfavorecem aos proletários. Nesta produção de juventude vemos “o segundo violino”: (a) descrever cuidadosamente as regiões em que habita e o modo como vivem os trabalhadores nestas regiões e criticar as condições em que o trabalho fabril deixa os trabalhadores, especialmente as mulheres e as crianças ; (b) rebelar-se contra a reação que caça a circulação das ideias de Hegel após Guilherme IV; (c) acompanhar o desenvolvimento das forças produtivas e as crises econômicas e comerciais na Inglaterra até desenvolver um primeiro “esboço da crítica da economia política”; (d) reconhecer o potencial revolucionário dos trabalhadores e acompanhar e ajudar a desenvolver em alianças as suas organizações. Nestes textos, vemos um Engels que se move muito rápido da juventude hegeliana de esquerda para a perspectiva materialista e dialética de abordagem dos problemas e processos históricos relativos à superação da situação da classe trabalhadora – a que vai servir por toda a vida.

O Engels que escreve a obra Ludwig Fuerbach e a saída da filosofia alemã clássica em (1886), que escreve o Anti-Duhring (1877-1878), já tem muito a nos dizer (desde a juventude) sobre a conjuntura que produz a ele e ao Marx na Alemanha dos anos 30 e 40 em que se formam antes de se encontrar. O estudo dos seus textos de juventude é fundamental para conhecer as lutas travadas pelos que viveram aquele tempo para enfrentar a reação à revolução francesa; (i) que procura impedir a dissolução do antigo regime (na forma da Santa Aliança) e que (ii) nega e impede acesso à filosofia iluminista, (iii) que reprime ao potencial revolucionário presente em Hegel e nos jovens hegelianos de esquerda do seio dos quais arrancam Marx e Engels após Feuerbach; (iv) que trava a revolução política da burguesa sem travar o seu desenvolvimento econômico; e (v) atrasa a almejada e necessária revolução proletária.

É pelas mãos de Marx e Engels, e especialmente da militância de Engels e do esforço que ele empreende de ligação dos trabalhadores da Europa Central, que em 1848 o proletariado já possui um programa próprio que vai se expressar no Manifesto do Partido Comunista. Um programa que carrega a teoria materialista e dialética da história que Marx e Engels sistematizam juntos (no famoso encontro de Paris entre 1846/1847 com A ideologia alemã). E é porque possuem um programa, que já pode mover-se em um pequeno Partido Independente cujo ensaio é a Liga dos Comunistas . Nas duas biografias nas quais tenho trabalhado, produzidas por Gustav Meyer e o CC do PCUS, destacam-se os esforços e a militância de Engels para (a) propagar as ideias marxistas; (b) dar combate aos pontos de vistas opostos aos dois jovens revolucionários; e (c) articular o movimento operário. Um vastíssimo trabalho de correspondência e publicística (facilitado para Engels por ser poliglota e mover-se a serviço dos negócios da família) vai marcar toda a vida deste modesto e vultuoso intelectual que o século XIX produz. Um intelectual com vida própria que se agiganta ainda mais quando encontra o estudioso rigoroso, exigente, que tem por hábito o mergulho profundo e radical nos problemas teóricos: Karl Marx. Engels sempre reconheceu isto e deu a Marx todo o mérito do projeto que construíram juntos!


O legado teórico e político revolucionário


Os pressupostos básicos do materialismo dialético e da dialética materialista que fundamentam o modo de ver desenvolvido por Marx e Engels para a “crítica de tudo o que há” vão ser reconhecidos por ambos na primeira metade dos anos 40, e o conjunto dos estudos vão evidenciar (i) que as categorias e leis da dialética constituem o modo do movimento da realidade (a meta a alcançar no processo do conhecimento); (ii) que é necessário retirá-las da forma mística hegeliana, direcionando-a à atenção ao estágio de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção que caracterizavam o capitalismo como um modo de produção mundial. Ambos percebiam claramente que a consciência (mais ou menos precisa) é expressão de um ser consciente que necessita continuamente estabelecer relações com a natureza e com os outros seres para produzir sua vida individual e toda a vida social. No processo de produzir sua existência, apossam-se de diferentes segmentos de forças produtivas assumindo posições concorrentes configurando-se classes com interesses divergentes em luta. Estes modos de produção se desenvolvem por contradições em ciclos de prosperidade e crise que levariam necessariamente a processos revolucionários de substituição de forças produtivas e de movimentação econômica e política entre as classes. No próprio movimento das classes nos processos de desenvolvimento das forças produtivas vão sendo engendradas as condições para os movimentos revolucionários nos quais novas classes ascendem ao poder político. Para o século XIX em diante, a tese central é que a classe em ascensão (pelas cadeias radicais que lhe foram impostas pela burguesia) é o proletariado, e que a meta do proletariado é a superação das cadeias radicais impostas (i) pelos resquícios do antigo regime que atrasam o desenvolvimento das forças produtivas e de produção; (ii) pela hegemonia econômica burguesa, pela apropriação privada das forças produtivas que empurra o proletariado para a única saída radical de revolucionar estas relações de produção.

O programa da revolução proletária está delineado no chamado à unidade dos trabalhadores de todo o mundo posto no Manifesto do Partido Comunista de 1848. A partir deste programa, a militância de Marx e Engels vai direcionar-se: (i) à contínua e atenta análise do desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção, com atenção redobrada à correlação de forças que vai se estabelecendo no interior da Inglaterra, da Alemanha e de toda a Europa Central, estendendo-se para a América do Norte e Central como novos centros industriais e comerciais; (ii) ao esforço contínuo de propagar para os trabalhadores o novo modo de ver, de defender posições sobre o movimento que estava conjunturalmente em curso e da necessidade da preparação contínua para o momento revolucionário que viria em breve.

Este exercício que assumem em uma clara divisão de tarefas, determina toda a produção que ambos vão realizar na forma de cartas, documentos, ações políticas e obras de análise conjuntural que vão levando à produção de “o Capital”. Cabe a Marx lapidar e sistematizar pela natureza de sua abordagem dos problemas sempre aprofundada e minuciosa, mas que contou continuamente com a atenção de Engels ao desenvolvimento da economia-política na Inglaterra e internacional, da ciência, da técnica, do desenvolvimento das forças produtivas, no mapeamento das crises cíclicas e nas janelas abertas pela contínua luta de classes – sem descurar da redação final que possibilitou que a conhecêssemos.

O legado teórico e político que, no século XIX, disputa a direção da organização dos trabalhadores e um projeto societário a seu serviço, e que no século XX (polariza todo o mundo), chega ao século XXI e nos desafia, numa conjuntura profundamente reacionária.

No esforço de reconhecer aquilo que é a necessidade vital, temos nos perdido em disputas que nos tem afastado das tarefas fundamentais que entendo serem as mesmas de Marx e Engels no século XIX:


  • (i) propagar o método de leitura da realidade formando os trabalhadores para o uso desta ferramenta;

  • (ii) manutenção da análise continuada do estágio de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção, preparando-nos para reconhecer os processos de crise e abertura para a revolução, com vistas à produção do quadro mais claro das tarefas a que somos desafiados em cada conjuntura;

  • (iii) partilha solidária destas análises construindo uma aliança de forças revolucionárias em torno dos interesses de todos os trabalhadores de superação das relações de produção capitalistas que se evidenciam genocida;

  • (iv) trabalho contínuo de construção de correlação de forças favoráveis à nossa ação organizada para o enfrentamento dos interesses do capital até a derrubada das classes que concentram e centralizam as forças produtivas reduzindo-as a seus interesses privados.


Neste desafio, me parece muito claro que não há espaço para disputas medíocres ou subordinação a projetos reformistas! Quando há carências, o primeiro passo é certamente atendê-las: cessar a fome, garantir habitação, garantir saúde e educação universal e gratuitas! Mas é traição profunda ao projeto histórico de superação do capitalismo usar estas carências para aprisionar a classe trabalhadora às cadeias radicais que devíamos, associados aos trabalhadores, lutar para superar! E aqui, grupos de pesquisa podem estar mais aproximados do que imaginamos das forças políticas que perderam o horizonte de análise, crítica e contribuição na construção das condições para a superação do capitalismo.

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