Notas de Estudos Conjunturais 4 - O reflexo da reestruturação produtiva mundial na política educacional brasileira
- Elza Peixoto

- 17 de ago.
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Atualizado: 19 de ago.

Durante todo o século XX e XXI no Brasil a política educacional esteve marcada pela elitização, pela seletividade e pela complexificação da divisão social do trabalho educativo que vão constituindo o diverso “Sistema Nacional de Educação” realmente existente na formação social brasileira[i].
Desde os anos 1840, para os setores da classe trabalhadora a que o acesso à educação foi permitido, seguiu-se sob o rígido controle e a vigilância dos setores produtivos, tais como (i) segmentos da indústria (SENAI, comércio (SENAC); (ii) dos transportes (SENAT); (iii) do agronegócio (escolas Técnicas e Agrotécnicas, hoje, Institutos Federais); (iv) da segurança pública (precariamente formados em cursos de curta duração ofertados pelas próprias forças públicas estaduais e municipais, com algum concurso de quadros pontuais das Universidades); (v) dos profissionais liberais que podem alcançar postos de gestão pública (educação confessional, Universidades públicas e privadas) e (vi) da formação da força de trabalho em geral para os postos administrativos e de comércio (Educação básica pública municipal, estadual e federal). O Brasil não atingiu a meta da extinção do analfabetismo (em 2024, 9,1 milhões de pessoas com mais de 15 anos são analfabetos), não universalizou a educação básica (apenas 56% da população com mais de 25 anos concluiu a educação básica), e a parcela da população que atingiu a educação superior (apenas 20,5% da população) não atingiu de forma universal postos de trabalho compatíveis com esta escolarização. Além disso, a educação infantil não é tratada com a seriedade que esta fase da formação humana demanda, os dados do Censo 2024 indicam a grave situação de que 63,6% das crianças de 0 a 1 ano e 53,3% das crianças de 2 a 3 anos não frequentavam creche ou estavam fora da escola. Neste último aspecto, o censo insiste em responsabilizar às famílias por esta grave situação [*].
Recentemente, estatísticas acerca do emprego evidenciam a procura majoritária por trabalhadores formados em nível de educação básica e a tese da "sobre-educada"[**] ("desnecessária") dos trabalhadores ao lado da tese da "desqualificação" para o atendimento aos postos de trabalho disponíveis, que levam a uma profunda reestruturação do sistema educacional brasileiro. Nestas notas conjunturais, anotamos principalmente as alterações na educação superior, sem deixar de destacar grave problemas no atendimento a educação infantil, a reforma do ensino médio, dos cursos técnicos e superiores ofertados pelos IF e organizados de acordo com os interesses do mercado de produtos e serviços regulado pelos proprietários das forças produtivas.
No século XXI a crise da acumulação capitalista que encerra a “Era do Ouro”, a partir dos anos 70, redireciona os capitais para as áreas de saúde e educação, com crescente interesse do setor privado pela educação superior[ii]. Desenvolve-se uma nova e complexa transformação na educação pública superior, que vai concentrar-se de forma significativa no setor privado e progressivamente, na educação à distância. Contando com incentivos estatais significativos, na forma da compra de vagas no setor privado (e consequente entrega de massas de recursos públicos a este setor), este setor cresce em poder econômico produzindo megacorporações educacionais cujas ações passam a ser negociadas na bolsa de valores, tais como a COGNA[iii], Yducs, Ser Educacional, Ânima, Cruzeiro do Sul Educacional, Bahema Educação[iv]. Estas empresas vão se constituindo em uma política deliberada de desmonte da educação superior pública brasileira, com significativo e progressivo corte de recursos e assalto ao fundo público em favor dos capitais privados da educação. Sem rodeios, analistas apontam explicitamente “os riscos do [investimento] setor educacional”:
[...] não podemos ignorar a importância dos planos de incentivo do governo, casos do Programa Universidade para Todos (Prouni) e do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES). Um eventual encerramento desses programas certamente traria um impacto negativo para o setor educacional como um todo[v].
Extremamente reduzidos, os recursos disponibilizados para a educação superior são concentrados nas agências de fomento (CAPES, CNPq, e Fundações de Pesquisa Estaduais) e redistribuídos pela editalização por critério de mérito. A regulação dos recursos para a pesquisa, a ciência e a tecnologia pela editalização, exige ferramentas de rankeamento do pessoal do ensino superior público e das próprias instituições, programas de pós-graduação e graduação, promovendo-se todo um complexo sistema de plataformização de informações e de incentivo e controle da produção docente [Plataforma Lattes, Diretório dos Grupos de Pesquisas do CNPq, Plataforma Sucipira, Sistema Nacional de Ética em Pesquisa – Sistema CEP/CONEP etc.).
Este processo de concentração e centralização dos recursos públicos e a sua distribuição aos pesquisadores pelo critério do “Mérito Acadêmico”, provoca profundas transformações no pessoal que atua na educação superior, particularmente, no âmbito da educação superior pública. Ao longo do século XXI, as exigências de produtividade para acesso (i) ao ensino nos cursos de pós-graduação, e (ii) para acesso aos recursos para a pesquisa e a iniciação científica, promoveram uma gravíssima divisão social do trabalho no interior das Universidades (Graduação x Pós-Graduação), refletida numa formação mais imediatamente voltada às demandas do mercado de trabalho, e uma formação de força de trabalho mais qualificada para a pesquisa e a pós-graduação, a atender a composição dos PPG e das agências de pesquisas, ou aos laboratórios instalados nas Universidades diretamente articulados aos setores produtivos.
Interessa-nos particularmente revelar o impacto deste processo no movimento estudantil e no movimento sindical docente. Não só aquela divisão graduação/pós-graduação nos afastou no interior das Universidade, como promoveu entre aqueles que se dispuseram à editalização uma intensa concorrência, e dificuldades extremadas para despregar-se da sobrecarga do trabalho intensificado e dedicar-se ao balanço crítico deste processo e à organização para as lutas pela Universidade pública. O ciclo de formação dos docentes que estão renovando o pessoal da educação pública superior dá-se marcado por este processo de incentivo à produtividade. Tal como foi realizado na quebra da capacidade organizativa dos trabalhadores metalúrgicos na região do ABC paulista, com a separação da formação das futuras gerações de metalúrgicos dos polos em que a velha guarda do sindicalismo de luta residia, a juventude forma-se ao longo de dez anos (graduação, mestrado e doutorado) fagocitada pelo produtivismo, sem qualquer acesso à história da pela Universidade Pública no Brasil, intimamente associada à luta docente por direitos trabalhistas, carreira, condições de trabalho e salários, e à luta estudantil por expansão do acesso com garantia de recursos para a permanência e de condições de estudo.
O processo nefasto do que conhecemos genericamente como produtivismo, que envolveu concorrência, divisão interna na categoria docente, e formação teórica, técnica e científica afastada das lutas sociais pela Universidade pública nos coloca na delicada situação da renovação dos quadros da educação superior sob forte ataque à educação superior, quando a comunidade interna ainda não compreende de conjunto a gravidade e a profundidade da crise da universidade pública superior brasileira na conjuntura da redução do país a produtor de comodities. Os institutos e Universidades federais foram cada vez mais pressionadas a atender aos arranjos produtivos locais, desenvolvendo-se conforme as parcerias induzidas pelo estado com setores como mineradoras, agronegócio, produção de petróleo e gás, fármacos e cosméticos e o desmonte progressivo dos cursos de ciências humanas que não se adequarem de alguma forma à lógica dos arranjos produtivos.
Este processo resta particularmente agravado pela divisão interna da classe trabalhadora na formação social brasileira, em parte, advinda das transformações decorrentes da reestruturação produtiva interna ao país, com descentralização do parque produtivo e quebra da tradição sindical dos anos 70 e 80; em parte, pelo ascenso de segmentos da classe trabalhadora ao poder de Estado com a vitória de Lula da Silva e do partido dos trabalhadores assumindo o Governo Federal, em um movimento de transformismo da esquerda para atuar a serviço do capital (ver Eurelino Coelho, Uma esquerda para o Capital). Respondendo e atendendo às pressões do Capital, estes governos vão promovendo reformas neoliberais, destacando-se a reforma da previdência de 2003, que quebra a ilusão dos trabalhadores (em geral) e particularmente, os trabalhadores da educação superior, quanto aos rumos do Governo Petista. Neste processo, saímos de 3 ou 4 centrais sindicais em 2003 (CUT, UGT, CTB, FS) para 12 Centrais sindicais em 2025.

Neste quadro agravado de divisão interna o movimento sindical dos servidores da educação Superior organiza-se entre FASUBRA, SINASEFE, ANDES SN, este último, que vem resistindo bravamente à investida de um determinado segmento governista que visa a destruição do ANDES SN, fundando e entregando na última greve a carta sindical à PROIFES Federação.
A compreensão de que o problema da classe trabalhadora se encontra “no avanço da direita” tem viabilizado o abandono das pautas históricas referentes à superação do capitalismo como modo de vida. Particularmente importante é o descolamento da categoria “extrema direita” dos setores capitalistas que a vão conformando (por exemplo, a indústria de armamentos, o agronegócio, as conexões entre o narcotráfico, a indústria armamentista e o tráfico de pessoas, ou ainda os lucrativos negócios da fé).
Diferentes avaliações sobre as possibilidades abertas pela presença do Governo Lula e de organizações de esquerda no poder de Estado, dividem hoje o movimento docente. A esquerda governista por dentro da Universidade passa a ter extrema dificuldade de organizar as lutas pela Universidade pública, operando mesmo para desmobilizá-las, promovendo a blindagem do governo.
Entre os setores da esquerda que constroem a luta pela Universidade pública na formação social brasileira, compreendemos que o Governo Lula (em ampla e indiscutível aliança com os capitais e a extrema direita) está ocorrendo em uma situação delicada de reorganização dos segmentos que servem (de forma individualista ou como intelectuais orgânicos) aos interesses dos capitalistas que controlam as forças produtivas na formação social brasileira. Assumindo atitudes diversas de descarte de vida humana, a extrema-direita abraça o neofascismo e assoma como expressão dos setores majoritários – particularmente a indústria de armamentos e o agronegócio – dirigindo o movimento prático do processo de controle e descarte da força de trabalho excedente, com a conivência dos demais setores. É no seio desta conformação que vemos a militarização das escolas (não por acaso, amplamente implantada na Bahia, Goiás, Paraná e Rio Grande do Sul), a escola sem partido e as múltiplas faces do ataque às Universidades Públicas.
Neste impasse conjuntural, encontramo-nos divididos e enfraquecidos para enfrentar o mais grave golpe dado pelos capitalistas na classe trabalhadora brasileira, que se refere à reforma administrativa, que abalará profundamente a parca estrutura de serviços públicos nas áreas de educação e saúde, dando-se o golpe final na retirada de direitos trabalhistas dos Servidores Públicos Federais.
A nossa avaliação é que a militância que atua no movimento docente deve trabalhar para, sem tergiversar, reconhecer o movimento profundo da acumulação privada, a escalada de descarte de vida humana, e a urgência em reorganização da classe trabalhadora, no seio da qual um projeto de política educacional deve estar voltado aos interesses de desenvolvimento dos trabalhadores e à tomada da direção dos negócios públicos a serviço do interesse da classe trabalhadora brasileira. Por isto nossa organização disputa a palavra de ordem pelo Poder Popular, pela Universidade Popular e pela Educação Popular a partir da Unidade Classista rumo a um futuro comunista. Neste horizonte, a nossa posição é de combate ao projeto do capital de extermínio e aprofundamento da expropriação dos trabalhadores, disputando as políticas sociais na correlação de forças, e denunciando a direção que o governo de frente ampla vai tomando que aprofunda a retirada de direitos, avança no desmonte da educação pública, e nela, da educação superior, e compromete o futuro da classe trabalhadora na formação social brasileira.
Notas:
[*] PNAD Contínua. Indicadores educacionais avançam em 2024, mas atraso escolar aumenta. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/43699-indicadores-educacionais-avancam-em-2024-mas-atraso-escolar-aumenta
[**] Disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202408/38-das-pessoas-no-brasil-tem-formacao-superior-a-exigida-pelo-emprego-que-ocupam
[i] PEIXOTO, ELZA M. DE M. Concentração de forças produtivas, luta de classes e impossibilidade de um "sistema nacional de educação" unitário. Trabalho Necessário, v. 21, p. 1-24, 2023. https://periodicos.uff.br/trabalhonecessario/article/view/56127
[ii] SEKI, Alan Kenji. O capital financeiro no ensino superior brasileiro (1990-2018). Disponível em: https://editoriaemdebate.ufsc.br/catalogo/wp-content/uploads/ALLAN_SEKI-CAPITAL-FINANCEIRO-NO-ENSINO-SUPERIOR-1.pdf
[iii] COGNA. Disponível em: https://ri.cogna.com.br/servico-aos-investidores/arquivos/
A Cogna (COGN3) reportou resultados em linha com as expectativas de mercado, com uma receita líquida de R$ 1,63 bilhões no 1T25, um crescimento de +5,8%, um Ebitda de R$ 556,0 milhões, +12,2% de alta e um lucro líquido de R$ 154,4 milhões (+205,7%). Todos os resultados foram comparados com o mesmo período em relação ao ano anterior. NORD. Lucro da Cogna (COGN3) dispara +206% no 1T25. É hora de investir? Disponível em: https://www.nordinvestimentos.com.br/blog/cogna-cogn3-resultados-1t25/
EXPERT. Cogna (COGN3): Mais luz em uma discussão ainda inacabada. Disponível em: https://conteudos.xpi.com.br/acoes/relatorios/cogna-cogn3-mais-luz-em-uma-discussao-ainda-inacabada/
Valor Econômico. Executivo de Valor: Roberto Valério da Cogna é premiado na categoria Educação. Disponível em: https://valor.globo.com/executivo-de-valor/noticia/2025/06/16/executivo-de-valor-roberto-valrio-da-cogna-premiado-na-categoria-educao.ghtml
[iv] MAIS RETORNO. Mercado Financeiro. Empresas listadas na bolsa: setor de educação. Disponível em: https://maisretorno.com/portal/empresas-listadas-na-bolsa-setor-de-educacao
[v] MAIS RETORNO. Mercado Financeiro. Empresas listadas na bolsa: setor de educação. Disponível em: https://maisretorno.com/portal/empresas-listadas-na-bolsa-setor-de-educacao



